MURILO MENDES





MAPA

Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pegam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações.
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, o homens “práticos"...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.

(Antologia poética. Rio de Janeiro: Fontana; Brasília, INL, 1976, p. 11-13)

















PRÉ-HISTÓRIA

Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.

(Idem, p. 19)













TEXTO DE INFORMAÇÃO

1

Noitefazes
Ou disfazes?

Noite redonda
Cararredonda
Ar voando:
Sono da palavra
Coisa-feita.

Dia quadrado
Caraquadrada
Ar parando:
Insônia da palavra.
Coisa-fazes.
Diafazes.

2

Tiro do bolso examino
Certas figuras de gramática
                        de retórica
                         de poética
Considero-as na sua forma visual
Fora de função / no seu peso específico
                        & som próprio
                        de palavras isoladas:

                        Oxímoron; anáclase, sinérese
                        Sinédoque. anacoluto. metáfora
                        Hipérbato. hipérbole. hipálage
                        Assíndeto

3

Ponga. S. f. (Brás. Norte) Espécie de jogo. Consiste num quadrilátero de madeira ou papel em que se traçam duas diagonais e duas perpendiculares que se cruzam e em que se jogam dados.

4

Inserido numa paisagem quadrilingue
Tento operar com violência
Essa coluna vertebral, a linguagem.

Esquadrinho nas palavras
Meu espaço e meu tempo justapostos.
E dobro-me ao fascínio dos fatos
Que investem a página branca:

Perdoai-me
Valéry
Drummond.

5

... as palavras / coisas / são belas
No seu vestido justo
Criado por alfaiates-óticos.



6

Eu tenho a vista e a visão:
Soldei concreto e abstrato.

Webernizei-me. Joãocabralizei-me.
Francispongei-me. Mondrianizei-me.

In Convergência.São Paulo: Duas Cidades, 1970, pp. 129-131

Comentários

  1. Como siempre es placentero pasar por tu blog
    A pesar de la barrera idiomática se entiende perfecto, soy de un área absolutamnete distinta de la tuya pero me gusta leer de todo y esto es maravilloso
    gracias desde Viña del mar

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  2. Magnífico poeta. Tentaré leer más en alguna parte.
    Obrigado.

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  3. '(...) Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
    e ouvir um sabiá com certidão de idade!'
    Murilo, maravilhoso!

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