TRÊS POETAS DO BARULHO

TRÊS POETAS DO BARULHO


I - SYLVIA PLATH



























A angústia de Sylvia Plath

A leitura de seu diário permite ver como uma escritora mágica, uma moça sadia, vaidosa, espontânea, irônica e sensível, foi acometida de uma neurose
A fama de Sylvia Plath como escritora está irremediavelmente ligada à repercussão do seu suicídio. Os poemas mais conhecidos estão no livro Ariel, publicado dois anos depois de sua morte e foram, na maioria, escritos nos seus últimos meses de vida. Durante o final da década de 50, Sylvia Plath era considerada uma escritora completa, porém alternativa, vivendo à sombra do talento do marido, o poeta inglês Ted Hughes. Escreveu um romance angustiado, The bell jar (1963), publicado sob pseudônimo, dias antes de morrer. Poucos, com certeza, teriam adivinhado que seria capaz de produzir poemas de tamanha força como os últimos que escreveu, combinando desespero enfurecido e altíssimo nível técnico literário.
Seus poemas são atormentados e profundamente inteligentes. Por expressar raiva e dirigi-los praticamente contra os homens, como em Daddy (Papaizinho), Plath foi canonizada pelas feministas durante as décadas de 70 e 80, que usaram indevidamente sua obra para suscitar polêmicas. Quando esse fanatismo passou, pôde-se perceber que sua poesia era realmente única, dotada de um misterioso jorro de eloquência poética.
Sylvia Plath suicidou-se em 1963. Se ela tivesse sobrevivido à terceira e última tentativa de pôr fim à vida, talvez não soubesse justificar a origem dos poemas de Ariel (1965). Hughes publicou uma coletânea (Collected poems), com textos inéditos de Sylvia, em 1981, que recebeu o prêmio Pulitzer em 1982. Os poemas são encantadores e inimitáveis e possivelmente influenciaram inúmeros poetas ao longo dos últimos 30 anos.

Os diários de Plath

Hoje, a tradução completa de seus diários permite ver, dia após dia, como uma escritora mágica, uma moça sadia, vaidosa, espontânea, irônica, hipersensível, foi acometida de uma neurose. Seus diários se assemelham a uma longa novela de Fitzgerald cujo personagem fosse verdadeiro, dotado de lucidez total e de coragem igualmente grande para enfrentar os problemas íntimos.
Duas coisas chamam particularmente a atenção nesses diários: de um lado, é a capacidade da estudante Sylvia Plath de nos mergulhar mais uma vez nas ondas luminosas daquela época do pós-guerra e um lado "American Graffitti" e, de outro, a terrível transformação de seu estilo mágico em imagens convencionais quando começa a viver com o poeta Ted Hugues. As pequenas estradas verdes e brancas de Cap Code, as noites de chuva primaveril de Cambridge, a insolência natural dos retratos, tudo perde seu verniz, seu brilho.

Vida breve

Nascida em 1932, no Estado de Massachusetts, numa família de origem austríaca, ela fez estudos brilhantes no Smith College. O pai morreu quando ela tinha 8 anos. Em 1953, tentou matar-se. Em 1957, seu marido, Ted Hughes, publicou The Hawk in the Rain, primeira coletânea de poemas que o tornaria célebre.
Em 1962, Hughes encontrou outra mulher e abandonou Sylvia. Em junho, numa casa de campo, em Devon, ela escreveu seus mais belos poemas, que compõem a coletânea Ariel, movida por verdadeiro frenesi. Antes do Natal, solitária, desamparada, mudou-se com os filhos para uma casa em Londres, onde viveu Yeats. Na manhã de 11 de fevereiro de 1963, depois de preparar o leite das crianças, escreveu um bilhete e abriu o gás da cozinha. Sua morte a tornou tão célebre quanto Hemingway e se instalou um culto em torno de sua obra e de sua vida.

Brilho fugaz

Hoje, Sylvia Plath ainda provoca polêmicas nos jornais americanos e ingleses. Fazem-se acusações a seu marido. Mas todos ficam estupefatos com a essência fugaz de sua arte, como diante de um monte de cinzas após uma noite de grande festa, como se o vento do entusiasmo tivesse levado uma geração à beira de uma praia, incapaz de abordar essa vida adulta que todos haviam deixado de levar em conta.
Mais do que uma obra literária, seus diários continuam a ser os misteriosos fragmentos de uma juventude americana, que devorava o sexo, suco de grapefruit, a brancura da aurora, a intensidade, o brilho fugaz da existência. O mundo da nova América era visto por cima dos óculos redondos de uma Lolita que leu O Apanhador nos Campos de Centeio, de Salinger, até a exaustão.
Texto de Jacques-Pierre Amette - AE


VENTO QUENTE



Lamento cego no vento, dias lunares de inverno,
Infância, os passos se perdem discretos em negra sebe,
Longo toque noturno.
Discreta vem a noite branca,



Transforma em sonhos purpúreos tormento e dor
Da vida pedregosa,
Para que nunca o espinho deixe o corpo em decomposição.



Profunda em sono suspira a alma angustiada,



Profundo o vento em árvores destruídas,
E a figura de lamento da mãe
Vagueia pela floresta solitária



Desse luto silente; noites
Repletas de lágrimas, de anjos de fogo.
Prateado, espatifa-se contra a parede nua um esqueleto de criança.

(1914)

Tradução de Cláudia Cavalcanti - Editora Iluminuras





















CANÇÃO DA JOVEM LOUCA


Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)



Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.



Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para
a insanidade.
(Acho que te criei no interior de minha mente)



Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo
do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:



Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.
Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)
Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com
estrondo
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior de minha mente)


Tradução de Maria Luíza Nogueira




II - ORIDES FONTELA






















Orides Fontela morreu em outubro de 1998, na mais completa miséria, mesmo sendo considerada um dos nomes mais importantes da poesia brasileira contemporânea.
Entre os admiradores de Orides se incluem Antonio Candido, Marilena Chauí e Davi Arrigucci Jr.
Orides nasceu em 21 de abril de 1940, em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Desde criança escrevia versos, e muito cedo começou a publicar seus poemas nos jornais da cidade. Nos anos 60, mudou-se para São Paulo e estudou filosofia na USP.
Em 1969, era publicado seu primeiro livro, Transposição. Depois vieram Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986) e Teia (1996). Com Alba, Orides ganhou o prêmio Jabuti. Os quatro primeiros livros foram reunidos no volume Trevo, que fez parte da coleção Claro Enigma, da Editora Duas Cidades. Na França, os poemas foram publicados em dois volumes com o título Trèfle.
Professora primária e bibliotecária, Orides viveu sempre em meio a grandes dificuldades. Sempre com os nervos à flor da pele, meteu-se em encrencas e provocou escândalos com seus melhores amigos. Boêmia e depressiva, várias vezes tentou o suicídio. Exageros que culminaram na morte precoce, aos 58 anos, num sanatório em Campos do Jordão.


MEIO-DIA



Ao meio-dia a vida
é impossível.



A luz destrói os segredos:
a luz é crua contra os olhos
ácida para o espírito.



A luz é demais para os homens.
(Porém como o saberias
quando vieste à luz
de ti mesmo?)



Meio-dia! Meio-dia!
A vida é lúcida e impossível.



(Tranposição, 1969)






DESTRUIÇÃO



A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.



A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.



A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.



(Transposição, 1969)




TORRES



Construir torres abstratas
porém a luta é real. Sobre a luta
nossa visão se constrói. O real
nos doerá para sempre.



(Transposição, 1969)


















SÃO SEBASTIÃO



As setas
- cruas - no corpo



as setas
no fresco sangue



as setas
na nudez jovem



as setas
- firmes - confirmando
a carne.


(Helianto, 1973)



Epígrafe



A um passo
do pássaro
res
piro.



(Alba, 1983)




CORUJA



Vôo onde ninguém mais - vivo em luz
mínima
Ouço o mínimo arfar - farejo o
sangue
e capturo
a presa
em pleno escuro.



(Rosácea, 1986)




AXIOMAS



Sempre é melhor
saber
que não saber.



Sempre é melhor
sofrer
que não sofrer.



Sempre é melhor
desfazer
que tecer.



(Teia, 1996)




III - HILDA HILST


























Hilda Hilst consegue a proeza de dar qualidade a qualquer tipo de texto: dramático, narrativo, poético. A poesia hilstiana é de uma densidade inabitual em nossa literatura. Uma reflexão radical sobre a existência, ora irônica, ora angustiada, mas sempre investigativa, instigante, um salto no abismo. Voltei-me para o universo da prosa dessa autora maravilhosa por achar nela um terreno ao mesmo tempo complexo e estimulante para a compreensão da narrativa de fundação em literatura brasileira. Isso não significa conceder à prosa hilstiana um estatuto superior. Aliás, onde começa a poesia e onde acaba a narrativa em Hilda Hilst? Uma de suas marcas é justamente a ruptura das fronteiras entre gêneros. Por qualquer ângulo, trata-se de uma poesia de primeira grandeza.

























POEMAS DE ALCOÓLICAS



I



É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.




II



Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.





























IV



E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.



V



Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou.

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