Edimilson de Almeida Pereira

Poesia Brasileira do Século XXI - 14

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Edimilson de Almeida Pereira (Juiz de Fora, Minas Gerais, 1963). É docente de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Na área de antropologia social publicou, dentre outros, os livros A saliva da fala: notas sobre a poética banto-católica no Brasil (Azougue, Rio de Janeiro, 2017) e Entre Orfe(x) e Exunouveau: análise de uma epistemologia de base afrodiaspórica na Literatura Brasileira(Azougue, Rio de Janeiro, 2017). Seus livros de poesia mais recentes (2017) são E (Patuá, São Paulo), Caderno de retorno (Ogum’s Toques, Salvador) e Qvasi – segundo caderno (Editora 34, São Paulo).


Caderno de retorno (fragmentos)

  Pele radar que indexa
um looping
ao atabaque
um anjo
à sua queda
iracema
à sua novela
alvo que incinera um atirador
no teto

  Pele uma varanda com vistas
para o incerto
um grifo
uma cilada
intervalo entre a boca e a palavra
idéia que fazemos
de quem não fala
ao nosso intento

  Para uso irrestrito a pele em desafio
a todo gesto
coleção de selos que o vento
dispersa da janela

[…]

  Pele recuperada é uma ilíada
como se o homem
cevando a si mesmo
sugasse a vida por dentro.

[…]

  É possível amar onde o desembarque de escravos
se multiplicou como as moscas
sobre as bananas?
Qué pretendes cuando olvidas esta memoria
la continuación del masacre?
cette odeur de cheveux au feux?
a fome como sintaxe?

[…]

  Quando desço as ruas do meu bairro quero
semear ileso
nenhuma isca na esquina
nenhum refúgio além do hibisco
odiando calendários.
Um homem vestido de sua cidade conhece
as falésias de si mesmo
como a beleza ganindo entre esgotos.
Antes de pisar na mina, o menino
corria os flamboyants para depois cair no mar.
A notícia desse espanto estilhaça ao meu lado
por que me enviaram
um postal de Luanda?
por que há tempos o litoral do país
aprende outros continentes?

[…]

  Desço as ruas do meu bairro
escorregando na tábua untada com sebo.
O caíque
singra melhor de todos, os maiores rifam a valer.
As mães vão reclamar dos calções puídos
mas o insulto dos carros nos anima à disparada.
o caíque é dos bons
o robinho
o pintado
o Gil

  Essa troupe cabeceia quando meço
as ruas de meu bairro. Ao final terei um cobertor
para salvar a anciã na estação de Lausanne?
um caderno para a estudante de Yumuri?
Com o coração traído e a bagagem insana
decolo do meu bairro
para as tenazes do mundo.

[…]

Como imaginar o corpo que há pouco
tangia os bois para a outra margem.
O corpo suspenso numa árvore
incriada e sem nome
grossa o bastante para sovar a carne
que os predadores não erram.

   Há uma hélice vazada em cáries
o sopro que exala nem é tanto de morte.
O pavor talvez de uma palavra
esculpida em escarmentos.
Um rastro no peito antecipa que todas as faces
recebem o mesmo furo
a mesma pressão de corda.
Era noivo o suicida? sentiu orgulho
ao cruzar a vila com sua tropa de monossílabos?
Vejo que se barbeia usando um caco de espelho
a espuma invadindo as orelhas.
É maior o sapato
o paletó a gravata
como são maiores
as coisas emprestadas
mas nunca maiores que o desejo de sermos
o artefato pulsante
iluminado de ímãs
um corpo para o amor.

[…]

Combien de temps resterai-je au bord de la ville
avec mes paroles et mon corps?
Le parnasse contemporain est mort
mais sa bouche mange les autres langues
adieu la carcasse des idées
bizarre séduction
école contraire aux abîmes.
Sortez,
sortez, ne laissez pas votre adresse. Laissez-moi
avec les désastres des jours
et mes cheveux-peur
mon dictionnaire malade
ma résolution de vivre.
Les esprits des vieux organismes pleurent
parce qu’ il n’y a plus d’ interêt pour un langage
qui appartient aux hommes.
La première expérimentation du verbe.
Le rendez-vous de
l’eau
du vent
du feu
sur la peau sans frontière.

[…]

  Nessa geração
que é minha e pouco decifro
a distância entre o descampado e o pátio
é maior. Das escarificações na face
restou o baralho
a flexão de rugas
sob a fuligem.
Cruzar a cidade é moer mais que mover-se
o amigo e sua bagagem
revestida de selos
quedam num depósito
identificados
como não identificados.

  Nessa geração (incomunicável) que decifro
algo se costura quando se desprende
a guitarra elétrica de Ogum
a visita de Zambi
aos legumes nos stands
tudo a olho nu
Nem atinamos com a direção, seguimos
por uma ave
um desfile
uma vítima
por zelo algum
mas tão possíveis que saltamos
da alma e partimos.

  A sua casa, irmão? o seu cavalo, a cicatriz
imaginária de seu pai? onde
os outros que foram sempre os mais lançados
os mais livres
diante das proibições reveladas?
O que é de todos para que nos reconheçamos
vizinhos de um mesmo navio?
ou isso não basta ante o furor que muda
os limites da flora?

  O que foi escrito em mim sobre minha febre
diz parte de mim
não me expõe ao sol, tatua apenas
uma bússola que treme
ao ocidente oriente
dos meus nervos.
Não me resgatem
não me salvem dos canais
não engessem em nome de um nome
o meu rebanho de aspas

[…]

Nenhum dos que amamos fala
em nós se o amor perde as escamas
mas se o ancião recupera
seus bonecos
com eles faz a alegria
do mercado
se uma vespa atravessa
o boi morto ele
corre como um Sendero

  se a vida tem uma perna
em nós é que se apóia
a bengala somos
para errar entre o leste e o oeste
a odisséia e o antílope.
Quis romper a manhã dos náufragos trazê-los
ao teatro esperando que me agradecessem
estreito no entanto o meu torso
e é como se erguesse
uma hidra dentro de mim.

  Os que vão ao lado são uma enigmática valise
escutam idiomas antes renegados
eu mesmo aceno
para firmar um pacto em morse.
A nós que gastamos
a roda
a pólvora
a palavra
não perturba se as levarão para a ilha ou o conserto
sua pele nos interessa
não a pele apólice a pele sim que se arrisca ao texto
e refuta a tese a pele em transe como um menino
que entretecesse sua conversa com os desastres como
um ginasta um monjolo prestes a se arremesarem no
solo a pele não para ser suportada mas ancoradouro e
trampolim um exercício de redação em estilo variado
a pele submersa a pele no topo do gesto como trajeto
que o desejo tomasse para sua vertigem como uma
flecha no salão de baile um êxtase a pele tão em tudo
e em todos tão nos confins que ao traduzi-la se per-
ceba um começo em outro começo cici furtando à
morte seu precipício um galo entre os seixos uma
lasca um sol em dispersão desde sempre
                                            

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