MÁRIO DE SÁ-CANEIRO
Máquina de Fazer Cabelo, de Bispo do Rosário
Hoje acordei-me um Sá-Carneiro. Após ler tantas palavras pesadas, regências sem viço, concordâncias de plástico e fumaça, tanta vocação para cinismo e incompreensão, sintaxes de distorção e sangramento, hoje amanheci Sá-Carneiro. Por isso, vou acrescentar mais um poema aos que publiquei em outra postagem.
Escrever "acrescentar mais um poema" foi de uma imensa infelicidade, pois trata-se de um dos mais belos poemas já realizados em língua portuguesa, é um daqueles que nos deixam tontos de beleza. Todo estudante que concluísse o ensino médio, deveria sair da escola conhecendo-o, amando-o: quem não o soubesse, não deveria receber o diploma.
Existe prova melhor de que os grandes poetas atravessam as linhas temporais e que não se confundem com as ocasionais máquinas de fazer versos e sucesso do que esse primor de poesia?
Não existe água que possa lavar a minha alma, mas Dispersão me faz lembrar de que a humanidade é maior do que juízes levianos que vêem manobras, delitos, arte circense onde a vida exibe a sua face mais bela.
Esta postagem também é um gesto carinhoso aos portugueses que têm acessado Poemargens.
Nasceu em Lisboa, em 1890. órfão de mãe aos dois anos. Depois de terminado o Liceu (1912), seguiu para Paris e matriculou-se no curso de Direito. Publica o livro de contos Princípio. Começa a escrever poesia. No ano seguinte, de férias em Lisboa, escreve A Confissão de Lúcio. De volta a Paris, passa por Barcelona e conhece, com assombro, uma catedral “paúlica” (de “paulismo”, tendência poética que Fernando Pessoa iniciou como poema Pauis). Em 1915, colabora no Orpheu e publica Céu em Fogo (contos). Sobrevêm grave crise financeira, moral e psíquica, que o leva ao suicídio, em 26 de abril de 1916.
Findava, assim, tragicamente, uma das mais estranhas organizações poéticas que Portugal já teve. Poeta e apenas poeta, mesmo em prosa, a qual é, igualmente, dum vigor poucas vezes encontrado, tais as sutilezas que consegue ver e plasmar em Língua Portuguesa. Seu caso pessoal explica-lhe a obra. Filho-família, educado à larga, dotado duma sensibilidade doentia, de “esfinge gorda”, era um estrangeiro na vida e no Mundo. Daí uma vida que só existe como Literatura, no bom e no mau sentido, pela exacerbação da fantasia apoiada numa imaginação sem limites, exótica, levando-o a planos neuróticos, arrancado o Poeta do solo já frágil sob os pés. Sua vida é sua poesia, de forma que esta documenta um ser que se procura inutilmente porque necessita de um “suporte” para evitar a “dispersão” interior, e, quem diz interior, diz total. O estraçalhamento da alma que se auto-analisa em vão nasce dum narcisismo, que a sensibilidade julga ser de eleito, dum egotismo patológico quase, pela ausência de qualquer conexão com o ambiente externo. Um delírio frenético, uma alienação, que não chega à loucura porque a Razão está isenta do ato analisador da sensibilidade, leva-o ao desespero, fruto da sensação de desconhecimento do próprio ser e do mundo em roda. A personalidade, desintegrada, atingida pela afastamento definitivo dum apoio, sólido, encontrou na poesia uma expressão fugaz ou insatisfatória que só acentua o processo degenerativo. Raia-se o inumano, ou o sobre-humano, e o Poeta está incrivelmente só e sem remédio. Quando sua poesia atinge o plano do gênio e revela o limite de sua irremediável angústia e da impossibilidade de ser, nasce o desejo de desertar, pois a vida é então estranha, sem razão, inútil. A obra oriunda desse “caso”, inclusive a em prosa, é um impacto novo, um choque na sensibilidade moderna, de que Mário de Sá-Carneiro foi o arauto e a mais integral expressão. É dos maiores poetas em Língua Portuguesa e do Modernismo português, ao lado de Fernando Pessoa.
In: AMORA, A. S., MOISÉS, M., SPINA, S. Presença da literatura portuguesa – História e Antologia – Vol. III – Simbolismo e Modernismo. São Paulo: Difel, 1961, pp. 233-234.
Nasceu em Lisboa, em 1890. órfão de mãe aos dois anos. Depois de terminado o Liceu (1912), seguiu para Paris e matriculou-se no curso de Direito. Publica o livro de contos Princípio. Começa a escrever poesia. No ano seguinte, de férias em Lisboa, escreve A Confissão de Lúcio. De volta a Paris, passa por Barcelona e conhece, com assombro, uma catedral “paúlica” (de “paulismo”, tendência poética que Fernando Pessoa iniciou como poema Pauis). Em 1915, colabora no Orpheu e publica Céu em Fogo (contos). Sobrevêm grave crise financeira, moral e psíquica, que o leva ao suicídio, em 26 de abril de 1916.
Findava, assim, tragicamente, uma das mais estranhas organizações poéticas que Portugal já teve. Poeta e apenas poeta, mesmo em prosa, a qual é, igualmente, dum vigor poucas vezes encontrado, tais as sutilezas que consegue ver e plasmar em Língua Portuguesa. Seu caso pessoal explica-lhe a obra. Filho-família, educado à larga, dotado duma sensibilidade doentia, de “esfinge gorda”, era um estrangeiro na vida e no Mundo. Daí uma vida que só existe como Literatura, no bom e no mau sentido, pela exacerbação da fantasia apoiada numa imaginação sem limites, exótica, levando-o a planos neuróticos, arrancado o Poeta do solo já frágil sob os pés. Sua vida é sua poesia, de forma que esta documenta um ser que se procura inutilmente porque necessita de um “suporte” para evitar a “dispersão” interior, e, quem diz interior, diz total. O estraçalhamento da alma que se auto-analisa em vão nasce dum narcisismo, que a sensibilidade julga ser de eleito, dum egotismo patológico quase, pela ausência de qualquer conexão com o ambiente externo. Um delírio frenético, uma alienação, que não chega à loucura porque a Razão está isenta do ato analisador da sensibilidade, leva-o ao desespero, fruto da sensação de desconhecimento do próprio ser e do mundo em roda. A personalidade, desintegrada, atingida pela afastamento definitivo dum apoio, sólido, encontrou na poesia uma expressão fugaz ou insatisfatória que só acentua o processo degenerativo. Raia-se o inumano, ou o sobre-humano, e o Poeta está incrivelmente só e sem remédio. Quando sua poesia atinge o plano do gênio e revela o limite de sua irremediável angústia e da impossibilidade de ser, nasce o desejo de desertar, pois a vida é então estranha, sem razão, inútil. A obra oriunda desse “caso”, inclusive a em prosa, é um impacto novo, um choque na sensibilidade moderna, de que Mário de Sá-Carneiro foi o arauto e a mais integral expressão. É dos maiores poetas em Língua Portuguesa e do Modernismo português, ao lado de Fernando Pessoa.
In: AMORA, A. S., MOISÉS, M., SPINA, S. Presença da literatura portuguesa – História e Antologia – Vol. III – Simbolismo e Modernismo. São Paulo: Difel, 1961, pp. 233-234.
Mário de Sá-Carneiro, por Almada Negreiros
DISPERSÃO
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.
A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro ─
Não me acho no que projeto.
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como teu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)
E sinto que a minha morte ─
Minha dispersão total ─
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...
Tristes mão longas e lindas
Que eram feitas p’ra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...
Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço.,..
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...
...........................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
In: SÁ-CARNEIRO, Mário de. Todos os poemas. Org. Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro, J. Aguilar; Brasília, INL, 1974, pp.48-50.
CARTA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO A FERNANDO PESSOA SOBRE O POEMA.
[...] De resto o que aí vai não tem importância. Eu pelo menos não sei se tem importância. Mas o curioso é como esses versos nasceram. Não nasceram de coisa alguma. Eu lhe conto:
Anteontem, quinta-feira de Ascensão, dia de Santo cá na República, à tarde, quase a dormir, num aborrecimento atroz, alheio, com a cabeça esvaída (dormira muito pouco na noite antecedente) eu estava sentado na terrasse dum café do Boul. dos Italianos. Sem saber como havia de passar o tempo, pus-me a fazer bonecos num papel... e de súbito comecei a escrever versos, mas como que automaticamente. Coisa para rasgar, pensei logo. Se havia disposição má para escrever era aquela em que eu estava. A seguir compus, sem uma rasura, mais de metade das quadras que lhe envio ─ coisa única em mim ─ que, como sabe, não tenho o trabalho rápido. Li o que escrevera por desfastio e achei-lhe um sabor especial, monótono, quebrado (pela repetição da palavra na rima) boa tradução do estado sonolento, maquinal, em que escrevera esses versos. E ontem, em vista disso, juntei o resto das quadras, mas num estado normal e refletidamente. Acho isto interessante. E, sobretudo, esses versos; eu, ao lê-los, sinto que marcam bem o ritmo amarfanhado da minha alma, o sono (não o sonho ─ o sono) em que muitos dias vivo. Sono de alma, bem entendido. Mas que nessa tarde coincidia com o sono físico... Francamente, rudemente, diga-me você o que isso vale. Afirmo-lhe que não o sei mas pressinto que é ou uma coisa muito valiosa, ou uma série de banalidades. Espero ansiosamente a sua resposta. Peço-lhe que perdoe “o domingo de Paris”. Não o corto, porque essas duas quadras pertencem ao número das que nasceram num estado subconsciente, com as melhores, aliás. (Domingo, porque, sendo dia de Santo, o aspecto da cidade é o mesmo que de domingo.) Rogo-lhe também que atenda particularmente às quadras 3ª, 9ª, 14ª, 11ª, 20ª e aos dois versos isolados finais que julgo ser o melhor da poesia. A quadra 15ª não tem beleza, se lhe indico é porque a acho muito singular o tê-la escrito. Que quer dizer isso? Parece uma profecia... Porque a escrevi eu? Como é que de súbito me surgiu essa idéia do Norte, duma cidade do Norte que eu depois, procurando, vejo que não pode ser outra senão S. Petersburgo?... (Escuso de lhe dizer que esta quadra pertence ao número das que escrevi primeiro, por isso mesmo é que ela se torna interessante.) do final da poesia gosto muito, muitíssimo, por a terminar quebradamente, em desalento de orgulho: leões que são mais que leões, pois têm asas e aos quais no entanto arrancaram as jubas, a nobreza mais alta, toda a beleza das grandes feras douradas. Nas quadras que escrevi dum jato raras emendas fiz: mudei um – “tristeza”! – para “sequinha”, por exemplo, e tudo o mais, muito pouco, e meras substituições de palavras. Em resumo, essa poesia pouco mais tempo levou a compor do que o tempo material para escrever. Como digo, isto em mim é extraordinário.
Repito: ignoro se isso é alguma coisa ou não é nada. Você mo dirá. A você, ao seu alto espírito, à sua maravilhosa clarividência me confio, só lhe rogando que me responda o mais breve possível e me perdoe estas constantes maçadas.
P.S. Depois de composta a poesia, vi que ela era sincera, que encerra talvez um canto do meu estado de alma. Pelo menos, creio-o.
In: Obras Completas. Vol. III – Cartas a Fernando Pessoa (2 vols.), com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues e apêndice e notas de Helena Cidade Moura. 2ª. ed.. Lisboa: Edições Ática, 1958-1959, vol. I, pp. 110-112.
Após a resposta de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro escreveu novamente ao amigo:
“Agradeço-lhe muito o que me diz sobre versos. E depois de pensar, concordo que a DISPERSÃO é a melhor das composições que lhe enviei.”
Idem, p. 134.
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