MARIA THEREZA NORONHA
Confesso que não conhecia a poesia de Maria Thereza Noronha. Graças ao escritor, tradutor e fotógrafo Ivo Korytowski, cujo site http://sopanomel.blogspot.com recomendo, pude tomar conhecimento dessa autora que me surpreendeu quer pelo apuro e domínio da forma poética, quer pela alta densidade lírica dos versos.
Maria Thereza Noronha, mineira de Juiz de Fora, considerada por Ivan Proença "uma das melhores poetas do Brasil-hoje". Formou-se em Direito pela UFJF e trabalhou como advogada no BNH e Caixa Econômica Federal. Participou do Grupo Edições de Minas, de poetas de Juiz de Fora. É aluna da Oficina Literária Ivan Proença. Livros: A Face na água (edição da autora, 1990), Pedra de limiar (Edições de Minas, 1993), A Face Dissonante (Oficina do Livro, 1995), "Alaúde", parte do livro Poesia em três tempos (Editora Bom Texto, 2001), O verso implume (Oficina do Livro, 2005) e 50 poemas escolhidos pelo autor (Editora Galo Branco, 2008). Reside no Rio de Janeiro, aposentada.
Poemas
Cores
A dama em preto e branco nos cinzentos
domingos. A amarelinha nos azuis.
Papagaios carmim rosa magenta
levantados no céu, braços em cruz.
Verdes anos. Do rio as pardacentas
águas acalentavam corpos nus.
Mexericas e ameixas cismarentas
ao pôr-do-sol filtravam ouro e luz.
Da imprensa marrom não se sabia.
Laranja, só a fruta merecia
o nome. Na inocência iam as horas.
O bispo em sua roupa solferino.
Nos dedos andarilhos dos meninos
o roxo corrompido das amoras.
Do livro O verso implume
García Chibaro, Chile
O profeta
Chegou sem deixar claro porque vinha.
Viveu ao Deus-dará, lírio do campo
coberto de esplendor, como convinha
a um servo de Deus. Um pirilampo
alumiava suas noites pardas.
Dizia-lhe bom-dia um rouxinol.
Algum lampejo em sua face tarda
à visão de uma garça ou um girassol.
Alimentou-se de ervas e raízes.
Não teceu nem fiou. Tentado, acaso,
rechaçou o demônio e seus matizes.
Partiu como chegou, ao fim do prazo.
E, por anos de vida tão felizes,
lavrou o seu recado em ferro e brasa.
Do livro A face dissonante
Luz e treva
Assim, ensolarado, o dia nasce
na lânguida mangueira. E a sebe ébria
de verde, em breve, reverbera. A face
da natureza é um solo que a celebra
em sonatas de luz. Embriagados,
os brincos-de-princesa, os brancos cardos
parecem levitar. E abreviados
sejam nossos suspiros nessas tardes.
Assim, ensimesmada, a noite túrgida
em sua negra túnica, ressurge
e, em trevas, entretece o brusco manto.
E encobre o trevo, a trova, o torvelinho
do trêfego pomar, e o desalinho
de nosso destramado e urgente canto.
Do livro A face dissonante
Imponderável
De onde tira a poesia sua lâmpada?
Onde lapida a pedra em que germina
o caroço da amêndoa, a casca fina
de cerejas colhidas numa estampa?
Como se torna o ímpeto na lânguida
maçã a se ofertar em purpurina
e seda, aos olhos presos na retina
desatados em asas de lavanda?
Como nasce do pântano a serena
flor, da náusea o canto, do ódio a pena
e da lâmina o corte sem vestígio
de sangue? E a rosa incerta na mandala
faz-se nítida à mão que a despetala
ou é a mão que a inventa, num prodígio?
Do livro Poesia em três tempos
Cruzadas
Cruzei palavras com o vento.
Suspiros e folhas secas
vieram na horizontal
desinências, dissonâncias
na vertical
sussurros e amendoeiras
sopraram em diagonal
anáforas e amor-perfeito
na transversal.
Cruzei palavras com o vento.
Vieram textos canônicos
na vertical
pássaros brancos em bando
na horizontal
sonetos camonianos
no original
e sapos bandeirianos
no Carnaval.
Cruzei palavras com o vento.
Cartas Chilenas chegaram
na horizontal
Castroalvinas flutuantes
espumas na vertical
sermões de Padre Vieira
no areal
Machado de Assis é Aires
no memorial.
Com o vento cruzei palavras.
Vieram folhas em branco
na vertical
vagas estrelas da Ursa
na horizontal
a roca sem fuso ou uso
no vendaval
e um poema esfacelado
na marginal.
Do livro Poesia em três tempos
No Tempo em Que a Canção
A música eletrônica me faz nervosa e insone
centopéia no ar gritando com cem pernas
queria envelhecer ao som do gramofone
no tempo em que a canção era abafada e terna.
O tempo onde o mocinho vencia o bandido
e a vida em preto e branco alternava mistérios
vivia-se e ninguém falava ao telefone
e o pai levava o filho a ver o trem de ferro.
Vivia-se e ninguém falava em Microsoft
e a vida, delicada, punha os pés na terra
queria envelhecer ao som de um foxtrote
no tempo em que a canção era abafada e terna.
Do livro O verso implume
ÀS SEIS DA TARDE
Às seis da tarde sempre morro um pouco.
Vou-me embora com o dia. Mas, retorno
para à noite tecer finas mortalhas
onde me abrigarei – mas não tão cedo.
Pela manhã desperto cega e inflável
dependendo do sopro e o espaço em torno.
Devagar, abro os olhos: e aos detalhes
fluidos, olhar mais nítido concedo.
E face ao dia – colhê-lo ou carpi-lo?
Se um tanto tem de flor o outro de cinzas,
desfolhá-lo, indecisa ou despedi-lo?
Que tanto faz me traga as boas-vindas
ou se esconda e ofereça-se em sigilo.
Às seis da tarde morrerei à míngua.
Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor
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