A POESIA ENTRE AS BALAS PERDIDAS

Mirta Cidra, pintora argentina


A POESIA ENTRE AS BALAS PERDIDAS

José Antônio Cavalcanti

A poesia nunca foi tão necessária. A sociedade trilha um caminho suicida ao construir uma cisão entre o mim e o eu. Apenas a velocidade do instante, a materialidade vazia dos simulacros, a filosofia do ter, da conquista, da ascensão social, do acúmulo de bens parecem dar visibilidade ao indivíduo. Assim, a aparência transforma-se em essência, o vazio torna-se centro e o nada se constitui em horizonte. Expulsa a humanidade do humano, o que poderia restar? Corpos repletos de prótese e almas esterilizadas pelos filtros do consumismo, da degradação ética e da ausência de solidariedade.

Se a poesia não muda o mundo, ilumina o coração do homem. Sem ela, viver é habitar um exílio permanente, flutuar na perigosa fronteira entre barbárie e civilização, potencializando ao máximo o predador instalado em cada indivíduo, até o limite da autodestruição anunciada pelas conquistas científicas e permanente ameaça nas mãos de políticos inescrupulosos.

Homero, Dante, Shakespeare, Camões, Pessoa, Drummond, Bandeira, Cabral e tantos outros, ao criarem suas obras, acrescentaram à humanidade novas dimensões, novos significados. O trabalho dos poetas é uma repaginação da linguagem. Ao limpar as palavras do pó acumulado pela rotina, ao restituir ou descobrir novos sentidos, ao perceber novos ritmos e incorporar novas melodias, ao assumir formas experimentais ou tradicionais, ao aceitar novas roupagens tecnológicas, a poesia sempre é ampliação da humanidade, movimento ascensional que carrega o ser para um estado de plenitude que só a arte pode proporcionar: o puro prazer de uma atividade sem finalidade, capaz de valer por si só, de instituir suas próprias regras, seus códigos e cuja realização desinteressada corresponde a um ato no qual o ser humano alcança uma realização autêntica.

Adorno equivocou-se ao pensar que, após Auschwitz, a poesia não seria mais possível. Ao contrário, a arte é a maior resposta ao terror. Suas formas não se esgotam na subjetividade do criador, não são circunscritas a um mim: são formas de um eu, de um ser que só é quando colocado frente a um outro. A poesia é ponte, passagem, cruzamento; espaço onde a linguagem – esse instrumento precário, protéico e traiçoeiro – intenta reproduzir estados de espírito compartilhados por criadores e leitores. O poema sempre é inscrição coletiva da humanidade: a autoria é o resultado de toda a história do uso de uma língua apreendida por um ser particular, o poeta. A poesia, portanto, é comunhão, busca e encontro de um gesto acolhedor, um carinho entre a solidão seminal do artista e a apropriação operada pelo leitor.

Mallarmé, respondendo a Degas, afirmou que a poesia não é feita com idéias, mas com palavras. Se a afirmação é irretocável e tem a confirmá-la o carimbo drummondiano – “penetra surdamente no reino das palavras” -, o mesmo não se aplica ao efeito que ela produz. Ler poemas é descobrir uma outra respiração, um outro ritmo não somente marcado pela alternância de sílabas tônicas e átonas, mas pelo sopro da vida, mais profundo, mais espiritualizado, um jogo de iluminação interior e sensibilidade capaz de elevar o homem a um plano superior de consciência.

Nesses tempos de indigência intelectual, de banalização, de vulgaridade artística, de manipulação midiática, de tentativa de impor um pensamento único e um padrão global, de submissão dos povos ao capitalismo imperial, a poesia é uma ferramenta poderosa de resistência e transformação. Sua linguagem é uma caligrafia de liberdade e lucidez com a qual podemos nos assinar, agora e sempre, como seres humanos.

Se a palavra humanidade ainda não encontrou significado, se a idéia contida nesse termo ainda não amanheceu, a aurora da plenitude do homem, a antecipação daquilo que virá a ser a humanidade está guardada na poesia. Resta-nos a extraordinária tarefa de cultivar, sob quaisquer condições, mesmo em campos minados ou zonas proibidas, a semente poética, como se fosse uma tatuagem inscrita na pele dos nossos arcanos ou como um vírus irremovível instalado em nossos desejos, forte o suficiente para vencer tudo o que avilta e apequena a nossa existência.

A poesia recusa o usual, a rotina, o conformismo. Busca insaciável de novos caminhos, aponta para a existência como um incessante movimento de reinvenção do humano, exemplarmente traduzido nos versos de Cecília Meireles: “A vida só é possível / reinventada”. Graças a essa inquietação, as épocas medíocres se apagam, e a poesia brilha eternamente.

Comentários

  1. Hola, Jose Antônio:
    He seguido tu serie sobre varios poetas (Lorca, Machado, Nicanor Parra) y, junto con esta última entrada, me parecen muy interesantes. Una gran labor para fomentar la lectura de poesía.
    Por cierto, tienes más premios a tu nombre en mi blog, por si deseas aceptarlos y ponerlos en el lateral de tu blog.
    Un fuerte abrazo

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  2. Gracias a esta inquietude, algun inda podemos respirar....

    Un saúdo

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  3. extractodenefertiti.blogspot.com20 de abril de 2009 às 13:16

    HOLA!!!amigo Jose Atonio me encanta que hallas leido mi blog estoy totalmente de acuerdo contigo! un gran cariño amigo Brasileño!mi blogs es extracto de nefertiti.blogspot.com nos leemos

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  4. hola Sr. esta super bien su blog, am ps la vdd, me gustaria mucho que algun da pasara por mi blog, y deje su comentario...

    atte: nael arzola,

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  5. Obrigada José Antonio

    gostei muito de toda a sua crônica,especialmente deste trecho:

    "O poema sempre é inscrição coletiva da humanidade: a autoria é o resultado de toda a história do uso de uma língua apreendida por um ser particular, o poeta. A poesia, portanto, é comunhão, busca e encontro de um gesto acolhedor, um carinho entre a solidão seminal do artista e a apropriação operada pelo leitor".

    Parabéns

    Bjs
    Cissa de Oliveira

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