ANA HATHERLY


ANA HATHERLY (1929)

Poeta, romancista, ensaísta, tradutora e artista plástica, Ana Hatherly nasceu no Porto em 1929, mas mudou-se para Lisboa desde muito cedo, onde ainda vive e trabalha. Licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, diplomada em estudos cinematográficos na London Film School e doutorada em Literaturas Hispânicas na Universidade de Berkeley, foi professora no Ar.Co em 1975 e 1976, e na Escola Superior de Cinema do Conservatório de Lisboa, de 1976 a 1978.

É professora catedrática de Literatura Portuguesa na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, desde 1984, e presidente do Instituto de Estudos Portugueses, por ela fundado na mesma universidade.

Hatherly inicia a sua carreira literária em 1958 com o livro Um Ritmo Perdido e, um ano depois, faz as suas primeiras pesquisas no campo da poesia concreta. Em 1965, liga-se à poesia experimental e, em 1969, a exposição Anagramas, na Galeria Quadrante, marca o início do seu percurso no domínio das artes plásticas. O título da exposição remete para uma série de outras obras em que o nome da artista surge inserido. Tal será o caso de Tisanas, Anagramático, Anacrusa, Leonorama...

Desde muito cedo, toda a sua obra manifesta o interesse por questões que se desenvolvem na ambiguidade entre a escrita e o domínio mais puramente visual, sendo por vezes muito difícil estabelecer as fronteiras entre estes territórios e definir onde termina a poesia e começa o desenho ou a pintura. Estas questões são sobretudo evidentes quando a artista trabalha em pequenos formatos e com tintas de escrever, algo que é muito frequente em toda a sua produção, desde meados dos anos 60 até aos dias de hoje.

O interesse pela poesia visual portuguesa da época barroca (à qual dedicou uma série de estudos e ensaios), assim como pelas escritas orientais (durante os anos 60 foram muito importantes os seus estudos da escrita chinesa e do Budismo Zen, visível sobretudo nas Tisanas), vai ser fundamental para as suas pesquisas, tanto no campo da poesia experimental e concreta, como no das artes plásticas.

Na sua obra visual, a artista realiza constantes abordagens e reflexões em torno da escrita e do acto de escrever, e explora as potencialidades gráficas da sua própria caligrafia, trabalhada mais como desenho do que como portadora de mensagens e conteúdos, de modo a “colher o inesperado dentro do conhecido”, e aproximando-se dos signos verbais orientais.

Na sua poesia, articula igualmente visualidade e conteúdos, ligando o texto à sua aparência final na página. Partindo desta profunda articulação entre mensagem e imagem desenvolve séries de Caligramas, que revelam influências de todas estas preocupações. Isso é visível tanto nas obras mais antigas como nas mais recentes: A Imagem da Mulher Invadida pelo Tempo (Homenagem a Henry Moore) (tinta-da-china s/ papel, 1998, col. do CAMJAP). Numa pequena folha vemos como a frase que dá o nome à obra desenha os contornos de uma figura feminina (cujas formas lembram as do escultor britânico). As mesmas palavras repetem-se inúmeras vezes em linhas ondeantes que definem formas e volumes e em que o conteúdo significativo se perde quase totalmente.

O período do pós-25 de Abril revela-se muito criativo para a artista, que se desdobra em intervenções. Participa na Alternativa Zero, organizada em 1977 por Ernesto de Sousa, com uma instalação intitulada Poema d’Entro. Esta obra tinha sido pensada originalmente para ser uma pequena câmara de paredes pretas, totalmente forrada a cartazes brancos e onde incidia uma luz intermitente. Contudo, recebeu a participação inesperada do público, que rasgava constantemente os papéis brancos, numa atitude de libertação violenta, que expressava a euforia da Revolução. Os cartazes tiveram de ser refeitos inúmeras vezes pela artista.

Na sequência da Alternativa Zero, Hatherly realiza, um mês depois, na Galeria Quadrum, a instalação/performance Rotura. No espaço da galeria dispuseram-se em labirinto treze grandes painéis de papel de cenário (1,20 m x 2,20 m cada). A intervenção da artista consistiu em rasgar as enormes folhas, enquanto era fotografada e filmada por duas equipas de cinema. O gesto destruidor da Alternativa Zero era aqui repetido, num formato diferente e com uma violência já plenamente intencional.

No mesmo ano, a artista produziu uma série de nove painéis de Descolagens da Cidade, hoje pertencentes ao CAMJAP. Na senda do trabalho com papéis rasgados, Hatherly saiu para a rua e dilacerou grandes pedaços de cartazes que se encontravam afixados por Lisboa. Reuniu-os depois em painéis, colocando lado a lado imagens de propaganda política com anúncios de circo e publicidades diversas.

Num deles, observa-se a imagem icónica de Che Guevara ao lado do excerto de um anúncio do Congresso da Juventude Comunista de 1977, tornado hoje num documento histórico raro. Mais abaixo, um leão e um acrobata remetem para a cartazística circense, e inúmeras frases rasgadas lembram as suas pesquisas e jogos com letras. Lembrando o trabalho de alguns artistas filiados directamente no Nouveau Réalisme, como Mimmo Rotella, a obra de Hatherly situa-se, no entanto, no ambiente vivido nos anos seguintes à Revolução e celebra de modo agressivo e eufórico este acontecimento.

As mesmas pesquisas são tratadas no vídeo Revolução (com o qual participou na Bienal de Veneza de 1976), em que a artista filma, com uma câmara de 8 mm, os graffitis e os cartazes políticos que enchiam a cidade de Lisboa.

As suas obras mais recentes continuam a articulação entre escrita, pensamento, gesto e produção de imagens. O CAMJAP mostrou algum desse trabalho recente numa exposição individual no ano 2000.

Esta mesma convocação de texto e imagem é visível nos graffitis que realiza em 2002 e em 2003, que criam imagens esfumadas e saturadas de cores fortes e que mantêm a mesma matriz experimentalista comum a todas as pesquisas, tanto na literatura como nas artes plásticas, fundidas e tornadas uma só através do seu gesto criativo.

Texto de ANA FILIPA RAMOS In: http://www.camjap.gulbenkian.pt.

POEMAS


























O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.



O POETA É UM GUARDADOR

o poeta é um guardador

guarda a diferença
guarda da indiferença

no incerto
guarda a certeza da voz

SABER

saber
é saber saber-te
sabermo-nos unir

unirmo-nos
é conhecermo-nos
sabermos ser

por fim sermos
é sabermos
sabermo-nos

conhecermos
a surda áspide

























A FELICIDADE É UM TÚNEL

o domínio
é erotismo do domínio
do domínio irrisório
mas enorme

submeter
ver tremer
ver o tremor do outro

vencer
o gelo
o desdém
veloz

a felicidade é um túnel 




























A INVENÇÃO DA RESPOSTA

a invenção da resposta

outrora
em riste
o passo mítico espantoso condensava
da santidade
o insurrecto pudor
o gelo do rubor
a pressa cerrada

agora
em triste
vacuidade
o desafio que expande
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp cede
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp degola
o desgarrado nexo do rasgo



UM CALCULADOR DE IMPROBABILIDADES


O poeta é
um calculador de improbabilidades limita
a informação quantitativa fornecendo
reforçada informação estésica.
É uma máquina eta-erótica em que as discrepâncias
são a fulgurância da máquina.
A crueldade elegante da máquina resulta da
competição pirotécnica da circulação íntima
e fulgurante do seu maquinismo erótico.
A psicologia do maquinal sabe que basta
que se crie um pólo positivo para que o pólo
negativo surja
ou vice-versa
e as evoluções telecinéticas pela força
das catástrofes desenvolvem suas faculdades
latentes ou absorvem-nas como a esponja absorve
as águas variáveis dos humores
que transforma em polaridade.
O maquinal eta-erótico está em astrogação
curso hipnótico dos polímeros.
Digo com precisão fenomenológica: o maquinal
circula em sua hiperesfera da maneira mais
excêntrica.
Digo e garanto:
o maquinal absolutamente absorve suas águas
variáveis e isso é o seu amplexo.
O maquinal eta-erótico é tu-eu.
O maquinal tu-eu
cuja tarefa árdua não é
definir a verdade está no meio da profusão
dos objectos
e considera o consumo a verdade deslocada
deslocação de grande tonelagem
laboriosa alfaiataria de eros
constante moribunda
e esse opróbrio dispersivo e vexável
indifere a vida esponjosa.
A história agrega a dificuldade essencial
das variáveis e o ensejo das coisas
prática difícil
está para o maquinal como uma indústria apócrifa


















OBSTINADAMENTE


Obstinadamente
os anjos
enchem nosso anseio veemente

Sereias do ar
são quimeras da mente

Activo sonho
de nós independentes
da nossa invenção
são reféns ardentes
e da ambição
que a todos seduz
desafio extremo
vertigem de luz

Sobre os despojos das almas escassas
pairam
com suas bocas lassas

Comentários

  1. Olá, José Antônio, aqui vai o link para o meu livro O Suicida, cujo trecho, vc leu no Releituras:

    http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=7020467&sid=01321719011528383155669046&k5=15B20189&uid=

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  2. Adorei essas informações sobre Ana Hatherly...
    Mas eu seria muito interessante saber mais
    sobre seu(s) estilo(s) poético(s).

    Parabéns pelo blog!

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