CECÍLIA MEIRELES



CECÍLIA MEIRELES (Rio, 1901-1964)

Uma das maiores vozes líricas do século passado, em qualquer língua, dotada de raríssimo senso dos valores verbais, Cecília Meireles manejou todos os ritmos e métricas, sempre se empenhando “em atingir a perfeição, valendo-se para isso de todos os recursos tradicionais ou novos”, conforme acentuou Manuel Bandeira.

Mário de Andrade, ao comentar Viagem, ratifica a visão de Bandeira, ao mencionar o “sábio ecletismo” de Cecília Meireles.

Alfredo Bosi, na História da Literatura Brasileira (33ª. ed., Cultrix, 1994), coloca-a na vertente intimista da poesia modernista filiada ao simbolismo, mas em um campo diferente dos “líricos do ser e da presença (Murilo, Jorge de Lima, Schmidt e Vinícius)”. Segundo este autor, Cecília “parte de um certo distanciamento do real imediato e norteia os processos imagéticos para a sombra, o indefinido, quando não para o sentimento da ausência e do nada” (p. 461). Se o autor minimiza a influência do grupo Festa e do neo-simbolismo na obra ceciliana, ressalta, no entanto, a existência de uma outra linhagem neo-simbolista (Antônio Machado, Lorca, Rilke, Tagore), que concebe a poesia como um “sentimento transformado pela imagem”. Linhagem esta analisada por Cecil Bowra em The Heritage of Symbolism.

Alexei Bueno, em Uma história da poesia brasileira (G. Ermakoff Casa Editorial, 2007), considera-a “a maior poetisa brasileira de qualquer época, senhora de um estilo completamente pessoal dentro do Modernismo brasileiro, no qual, entre a forma fixa e o verso livre, desfilam todas as possibilidades formais do idioma, com sutis influências ibéricas e portuguesas, dos Cancioneiros até a contemporaneidade, resultando num vasto e libérrimo arsenal de processos expressivos através do qual se materializará o que de mais próximo à noção de ‘poesia pura’ se escreveu no Brasil” (p.316).

A meu juízo, essa filiação às fontes rítmicas da nossa poesia ganha maior precisão se alcança a percepção da sobrevivência na poesia ceciliana de uma musicalidade de raiz provençal: do domínio desse trobar clus resultam a extraordinária cadência de seus versos e a aparente simplicidade, ambas fruto de um processo elaboradíssimo de construção poética, a exemplo de Canções e do Romanceiro da Inconfidência. Este último livro é considerado por Alexei (e por quase todos os críticos de poesia) o melhor poema sobre a História publicado em nossa literatura.


"Cecília levita, como um puro espírito...Por isso ela se move, "viaja", sonha com navios, com nuvens, com coisas errantes e etéreas, móveis e espectrais, transformando em pura poesia essa caminhada. Uma das excepcionalidades de Cecília Meireles: a composição de uma poesia densamente feminina, não apenas a poesia feita por alguém que é mulher, mas obra de mulher, de um sem número de perspectivas sobre as coisas que os homens não teriam, poesia na qual uma das grandes forças é a delicadeza, e delicadeza de poeta, que transfigura a vida em canto..."

Ana Cristina Cesar

"Nasci no Rio de Janeiro, três meses depois da morte do meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento da minha personalidade."

Cecília Meireles

Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde, foi nessa área que os livros se abriram e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano.

Cecíclia Meireles

Tomei por base os nove volumes das Poesias completas de Cecília Meireles, editadas pela Civilização Brasileira, em 1973. A edição peca pela completa falta de estudos, notas, informações, dados substanciais sobre a autora e a obra. Infelizmente não possuo a Obra completa, publicada pela José Aguilar.


Bibliografia poética:

Espectros, 1919
Nunca mais e Poema dos Poemas, 1923
Balada para El-Rei, 1925
Viagem, 1939
Vaga Música, 1942
Mar Absoluto, 1945
Retrato Natural, 1949
Amor em Leonoreta, 1952
Doze Noturnos da Holanda e O Aeronauta, 1952
Romanceiro da Inconfidência, 1953
Pequeno Oratório de Santa Clara, 1955
Pistóia, 1955
Canções, 1956
Romance de Santa Cecília, 1957
Metal Rosicler, 1960
Poemas Escritos na Índia, 1961
Antologia Poética, 1963
Solombra, 1963
Ou Isto ou Aquilo, 1965
Crônica Trovada da Cidade de Sam Sebastiam, 1965


CECILIANA

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
─ não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
─ mais nada.

(In: Viagem, pp. 5-6)



RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
─ Em que espelho ficou perdida
a minha face?

(In: Viagem, pp. 10-11)




























BLASFÊMIA

Senhora da Várzea,
Senhora da Serra!
pelos teus santuários,
com cinza na testa,
irei arrastando
os joelhos e a reza:
subindo e descendo
ladeiras de pedra,
sustentando andores,
carregando velas,
para que me livres,
Senhora, da lepra!
Senhora da Várzea,
Senhora da Serra!
terás mais altares,
terás mais capelas,
sinos de mais bronze,
mais flores, mais festas
mais círios, mais rendas,
e de ouro coberta
brilharás, Senhora,
de fazer inveja
a todas as santas
que há na glória eterna!

Matei minha filha:
mas era tão bela!
Roubei cinco noivas:
mas o amor não cega?
E Deus não perdoa
a quem se confessa?
Ergui seis igrejas:
nenhuma te alegra?
Todas em memória
dessas seis donzelas
que por mim perderam
seu corpo, na terra...
Meus crimes, paguei-os
com brincos, fivelas,
coroas de prata,
e mais que te dera,
para me livrares,
Senhora, da lepra!

Senhora da Várzea!
Senhora da Serra!
pede-me por sonhos:
darei quanto peças
─ mais ouro, mais prata,
mais luzes, mais telas.
Maior que os meus crimes
é a minha promessa.

Vejo com os meus olhos
como degenera
a carne que tive.
Por que me desprezas
Senhora da Várzea?
Do mal que me cerca,
por que não me livras,
Senhora da Serra?
Mão com que matei,
hoje se me entreva.
Sinto desmanchada
em cinza funesta
a boca de outrora.
E a língua me emperra
aquela peçonha
de que seis donzelas
receberam morte,
lindas e sinceras.

Senhora da Várzea!
Senhora da Serra!
Paguei meus pecados
─ e não me libertas?
Calcaste dragões,
dominaste feras,
e ao mal que me oprime,
Senhora, me entregas?
Por que não me salvas?
Que ordenas? Que esperas?

Ah, santa insensível,
não sofres, não pecas!
Senhora da Várzea!
Senhora da Serra!
Devolve o ouro e a prata
das minhas ofertas!
Que o vento arrebente
portas e janelas
das tuas igrejas!
E fiquem nas trevas
ou sejam levados
pelas labaredas
altares queimados
e naves desertas!
Caiam no teu peito
mais agudas setas!
Arda em brasa o ramo
que nas mãos carregas!

Nunca mais se arrastem
meus joelhos nas pedras,
nem a minha boca
suspire mais rezas!
Nunca mais andores,
nem círios nem festas!
Dei-te seis igrejas:
que me deste? Lepra?

Senhora da Várzea!
Senhora da Serra!
Grito aos quatro ventos
do céu e da terra.
Conheci seis virgens:
nenhuma severa
como tu, nem fria,
serena e perversa!
Seis virgens matei!
Sou morto por esta!
Dei-lhe sedas e ouro
que às outras não dera!
Soluçar de joelhos,
- só diante dela!
Morro impenitente,
fazendo-lhe guerra.
Que o fogo profundo
lamba a minha lepra!
Seja eu todo cinza,
no tempo dispersa,
negra cinza do ódio
que te envolve e nega.
Senhora da Várzea,
Senhora da Serra,
ó virgem das virgens,
sem piedade ─ e ETERNA!

(In: Mar absoluto e outros poemas, pp. 60-64)

















CANÇÃO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
─ depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quando for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

(In: Viagem, pp. 17-18)
























REINVENÇÃO


A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... ─ mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só – no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só ─ na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

(In: Vaga música, pp. 191-192)
























LUA ADVERSA

Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

(In: Vaga música, pp. 193-194)

























BALADA DAS DEZ BAILARINAS DO CASSINO

Dez bailarinas deslizam
por um chão de espelho.
Têm corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras azuis e dedos vermelhos.
Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,
e dobram amarelos joelhos.

Andam as dez bailarinas
sem voz, em redor das mesas.
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores
e os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e a dança escorre
uma sedosa escada de vileza.

As dez bailarinas avançam
como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta,
empurrando olhares e arranhando o ruído.
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
de imaginários, chorosos vestidos.

As dez bailarinas escondem
nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
passa uma faixa de morte tranqüila.
Como quem leva para a terra um filho morto,
Levem seu próprio corpo, que baila e cintila.

Os homens gordos olham com um tédio enorme
As dez bailarinas tão frias.
Pobres serpentes sem luxúria,
que são crianças, durante o dia.
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados de melancolia.

Vão perpassando como dez múmias,
as bailarinas fatigadas.
Ramo de nardos inclinando flores
azuis, brancas, verdes, douradas.
Dez mães chorariam, se vissem
as bailarinas de mãos dadas.

(In: Retrato natural, pp. 150-151)


ROMANCE LIII OU DAS PALAVRAS AÉREAS

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...

Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
_ e estais no bico das penas,
e estais na tinta que as molha,
e estais nas mãos dos juízes,
e sois o ferro que arrocha,
e sois o barco para o exílio,
e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...

Ai, palavras, ai, palavras,
Mirai-vos: que sois, agora?
- Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- o duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- Sois povo pelas janelas,
Cortejo, bandeiras, tropa...


Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
- sois um homem que se enforca!

(In: Romanceiro da Inconfidência, pp. 116-118)





















MEMÓRIA

A José Osório

Minha família anda longe,
com trajos de circunstância:
uns converteram-se em flores,
outros em pedra, água, líquen;
alguns, de tanta distância,
nem têm vestígios que indiquem
uma certa orientação.

Minha família anda longe,
- na Terra, na Lua, em Marte –
uns dançando pelos ares,
outros perdidos no chão.

Tão longe, a minha família!
Tão divida em pedaços!
Um pedaço em cada parte...
Pelas esquinas do tempo,
brincam meus irmãos antigos:
uns anjos, outros palhaços...
Seus vultos de labareda
rompem-se como retratos
Feitos em papel de seda.
Vejo lábios, vejo braços,
─ por um momento persigo-os;
de repente, os mais exatos
perdem sua exatidão;
Se falo, nada responde.
Depois, tudo vira vento,
e nem o meu pensamento
pode compreender por onde
passaram nem onde estão.

Minha família anda longe.
Mas eu sei reconhecê-la:
um cílio dentro do oceano,
um pulso sobre uma estrela,
uma ruga num caminho
caída como pulseira,
um joelho em cima da espuma,
um movimento sozinho
aparecido na poeira...
Mas tudo vai sem nenhuma
noção de destino humano,
de humana recordação.

Minha família anda longe.
Reflete-se em minha vida,
mas não acontece nada:
por mais que eu esteja lembrada,
ela se faz de esquecida:
não há comunicação!
Uns são nuvem, outros, lesma...
Vejo as asas, sinto os passos
de meus anjos e palhaços,
numa ambígua trajetória
de que sou o espelho e a história.
Murmuro para mim mesma:
“É tudo imaginação!”

Mas sei que tudo é memória...

(In: Vaga música, p. 156)


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Texto de Valéria Lamego* - Ensaio publicado na Folha de São Paulo em 04/08/1996.


A musa contra o ditador















Nos autoritários anos 30, a poeta lutou na imprensa pela democracia e contra o ensino religioso
"Cecília, és tão forte e tão frágil. Como a onda ao termo da luta. Mas a onda é água que afoga: Tu, não, és enxuta." Manuel Bandeira (em "Improviso", no livro ''Belo Belo'')

Cecília Meireles na década de 30 rompeu com todos os tabus de uma sociedade ao defender uma política menos casuísta e uma educação moderna.



Por meio de seus artigos sobre política, educação e cultura, Cecília nos oferece uma outra face daquela que foi considerada a musa diáfana, fluida e etérea da literatura brasileira. Sinônimo de ilha e isolamento (para Sérgio Milliet), a escritora cuja poesia não estava "inserida no drama coletivo de sua geração" (para o crítico Mário da Silva Brito), em sua trajetória intelectual a Cecília Meireles que deixou suas marcas foi uma defensora da idéia universal de democracia, num período em que a incoerência e as paixões pelo autoritarismo arrastaram jovens intelectuais.



Coleção de inimigos



A estréia de Cecília Meireles na redação de um jornal se dá em 30, década marcada pela transição de duas grandes guerras e, no Brasil, pela revolução de outubro. Na imprensa pipocavam jornais de adesão ao novo regime. Assim surgiu o "Diário de Notícias", em junho de 1930.


Mais do que um simples matutino, o jornal de Orlando Dantas e Nóbrega da Cunha trazia uma seção diária dedicada à educação e à política, a "Página de Educação", cuja diretora era então a jovem poeta. Jornalista liberal, partidária incansável das liberdades individuais, em seus 960 artigos publicados na "Página", entre junho de 1930 e janeiro de 1933, lutou pela instauração de uma república democrática, bem diferente daquela regida pelo populismo autoritário do regime que se descortinava após a revolução.


Crítica ferrenha das atitudes de Vargas, a quem se referia como "Sr. ditador", Cecília realizava em sua "Página" uma espécie de jornalismo "enragé". Ao sustentar uma idéia de nação menos ufanista, colecionou inimigos e desafetos de suas convicções sobre liberdade, dentre eles o ministro da Educação Francisco Campos e o crítico católico Alceu de Amoroso Lima, que anos depois em seu livro de memórias, "Companheiros de Viagem", de 1971, reconheceu na poeta "uma grande figura feminina do modernismo".


A truculência ideológica do período nos encarrega de mostrar, no entanto, que as perseguições por motivos ideológicos, políticos e, por que não, estéticos, acompanharam a estreante Cecília ao longo dos anos 30. E parecem acompanhá-la até os dias de hoje, devido a leitura equivocada que se faz de sua obra e de um desconhecimento total sobre sua passagem pela política nos anos seguintes à Revolução de 30 e, mais tarde, durante o período do Estado Novo.


Partidária dos princípios da Escola Nova, a escola moderna do filósofo norte-americano John Dewey, junto com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, Cecília assistiu à ascensão de um estado autoritário e de uma Igreja Católica que tentava recuperar seu poder após 40 anos de uma república laica, com ares positivistas.


A Revolução de 30 traz para a Igreja Católica a possibilidade de reaver o poder _embora sua popularidade fosse incontestável. Em 1931, por exemplo, Nossa Senhora Aparecida é consagrada padroeira do Brasil em grande festejo popular. E em 12 de outubro, também de 1931, a título de comemoração de um ano de revolução, é inaugurada, no Rio de Janeiro, Distrito Federal, a imagem mor da fidelidade católica de um regime: o Cristo Redentor.



O ataque ao ministro


A inclusão do ensino religioso nas escolas públicas, em 1931, por um decreto de Vargas, despertou a poeta e seus companheiros para a verdadeira face da Revolução de 30. Um movimento, diga-se de passagem, totalmente apoiado pelo grupo em seus primórdios.


Na batalha contra o decreto do ensino religioso, Francisco Campos foi figura central das críticas da poeta.


"Os senhores viram o caso do sr. Francisco Campos", escreve no artigo "A Hora do Espetáculo", "veio precedido de uma fama extraordinária de menino prodígio. A cada passo era citada a reforma de ensino mineira, que nós sempre aplaudimos com restrições, como a obra glorificada do sábio de Indaiá. A reforma já trazia no seu bojo agourento, o fantasma do clericalismo. Que foi que fez como ministro da Educação? Anunciou uma reforma que apareceu aos pedaços, confusa, como arrancada a ferros do seu cérebro reputado genial. Todos os jornais protestaram, protestaram os interessados, um por um, e o ministro ficou indo e vindo entre o Rio e Minas, como se não tivesse a responsabilidade formidável do cargo que lhe deram e com o qual, infelizmente, não se contentou. E ainda arranjou o decreto sobre o ensino religioso, como a última e desgraçada manobra para se inutilizar como ministro da Educação...".


A laicidade da escola, bem como a co-educação dos sexos e a manutenção de uma escola pública livre dos arbítrios da família e da igreja eram as principais bandeiras de Cecília na "Página". Princípios esses encarados com verdadeira ojeriza pelo porta-voz da Igreja Católica, o crítico Alceu Amoroso Lima. No artigo "Absolutismo Pedagógico", de março de 1932, sobre o Manifesto da Educação lançado pelo grupo da Escola Nova, Alceu afirma: "Cinco são os meios que recomenda a nossa NEP (1) para a obtenção dos seus dois filhos _o biologismo e o estadismo pedagógicos: ruptura do quadro familiar, laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e co-educação".
A campanha de Meireles, na imprensa, não se limitava a defender o programa liberal da Escola Nova. Seguida por um desejo irrefreável de combate aos medalhões e à politicagem reinante, Cecília, sem dúvida, se fazia ouvir no Palácio do Catete. "O sr. Francisco Campos", dizia ela, "parece que resolveu dar cada dia prova mais convincente de que não entende mesmo nada, absolutamente, de pedagogia. Que a sua pedagogia é uma 'pedagogia de ministro', isto é, 'politicagem'...".


Qualquer atitude sectária valia para a poeta-jornalista um artigo reflexivo. E assim o fez quando Manuel Bandeira, convidado a participar do júri do Salão de Belas-Artes de 1931, recebeu severas críticas dos pintores acadêmicos. "Há uma coisa que parece ter desagradado: a inclusão de um poeta numa comissão de belas-artes. Talvez, se fosse um poeta parnasiano, acadêmico, cheio de lugares-comuns e de preocupações pronominais, o descontentamento fosse menor. Trata-se, porém, de Manuel Bandeira."



Cansada da política


A "Página de Educação" encerra para Cecília em janeiro de 1933, quando um cansaço tremendo com as manobras políticas do governo e o estado da educação no Rio de Janeiro a tomam por completo. A poeta chega mesmo a manifestar em sua correspondência o "horror" que lhe causava o jornalismo em sua vida.


Entretanto, logo após sua despedida da "Página de Educação", Cecília Meireles volta aos jornais. Desta vez para o carioca "A Nação", no qual foi contratada com um senão: poderia escrever sobre tudo, menos sobre política!


Durante toda a sua vida a poeta se dedica ao jornalismo. Na década de 40 escreve para "A Manhã" uma coluna semanal sobre folclore. Em seguida, na década de 50, de volta ao "Diário de Notícias", ocupa o famoso rodapé de literatura do "Suplemento Literário", pelo qual já tinham passado Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. Termina sua carreira na imprensa na década de 60, na Folha.


Em nenhuma outra época de sua vida, como na década de 30, Cecília Meireles teve uma participação tão intensa, tão coletiva e tão política. Como afirmara Mário de Andrade, no artigo "O Movimento Modernista", "estamos vivendo uma idade política do homem". Cecília, na década de 30, parece ter levado às últimas consequências essa determinação de sua geração. Foi política onde lhe cabia, nas lutas educacionais, no jornalismo, nas disputas acadêmicas. Jamais na poesia, onde foi por "Definição:/ Concha, mas de orelha;/ Água, mas de lágrima; Ar com sentimento./ _Brisa, viração/ Da asa de uma abelha" (2).



Intrigas políticas



Censura da era Vargas perseguiu poeta especial para a Folha




Se a história da literatura desconhece a Cecília Meireles da luta política, desconhece também a que sofreu perseguições da censura de Vargas, dos católicos e em concursos literários.


O primeiro desencontro com Alceu Amoroso Lima se dá em 1929, quando Cecília concorre à vaga de professor de literatura brasileira pela Escola Normal. A jovem professora ainda não era a consagrada poetisa de ''Viagem'' (1939), ''Vaga Música'' (1942) e ''Mar Absoluto'' (1945), embora já fosse considerada pelos modernistas cariocas uma revelação, com seus livros ''Espectros'' (1919) e ''Baladas para El-Rei'' (1925).


Concorreu à pretendida vaga com a tese ''O Espírito Vitorioso'', um trabalho francamente liberal, no qual discorria sobre a liberdade individual na sociedade. E perdeu. Antônio Carlos Villaça, em ''Tema e Voltas'', é enfático: "Clóvis Monteiro derrotou Cecília, que sempre guardou tristeza de Alceu (Amoroso Lima) ter votado em seu adversário".


A contenda, até aí, poderia se resumir puramente a problemas de ordem pedagógica. Clóvis Monteiro era um técnico de educação sem qualquer pretensão literária. Sem dúvida, seu perfil, numa época em que a valorização da tecnocracia ganhava espaço, agradou muito mais do que o da jovem professora e poeta.


Passados cinco anos e todo o furor causado pela "Página de Educação", Cecília inaugura em 1934, junto com seu marido, o pintor Correia Dias, o Centro de Cultura Infantil, no "vazio e abandonado prédio" (nas palavras dela) do Pavilhão do Morisco, na praia de Botafogo, no Rio. Na administração de Anísio Teixeira, o centro reunia "mil e quinhentas inscrições de leitores".


Em 1937, em plena vigência do Estado Novo, o centro é invadido pelo interventor do Distrito Federal, que apreende de sua biblioteca ''As Aventuras de Tom Sawyer'', de Mark Twain, por considerá-lo comunista. O caso teve repercussão internacional e nacional. No seu artigo "A Última Aventura de Tom Sawyer", o acadêmico Austregésilo de Athayde lamenta que o ''New York Times'' tenha denunciado ao mundo que, no Brasil, o clássico americano fora retirado das prateleiras de uma biblioteca infantil por ser considerado "material subversivo".


Depois de invadido pela polícia, a prefeitura resolve fechar o Centro de Cultura Infantil e, em seu lugar, instala um posto de arrecadação fiscal.



A censura da academia



Mais escandaloso ainda foi o caso do prêmio de poesia promovido pela Academia Brasileira de Letras em 1938. Cecília Meireles, numa "estranha volúpia feminina", segundo palavras de Mário de Andrade, resolve se candidatar ao prêmio com o livro ''Viagem''.



Com ela disputaram 28 obscuros candidatos.


Diante do disparate dos concorrentes, o relator da comissão do prêmio, Cassiano Ricardo, e os demais membros da comissão, Guilherme de Almeida e João Luso, resolvem atribuir um prêmio único a Cecília Meireles. Decisão que causa furor não só à imprensa, como ao acadêmico-médico Fernando de Magalhães.


A notícia ganha espaços nos jornais. O jornal nazista "Meio-Dia" publica uma reportagem com o título "Inconvenientes os Versos da Poetisa Cecília Meireles". A celeuma foi até mesmo estampada nas páginas da ''Gazeta Policial''.


O polêmico e conservador crítico Carlos Maul, autor do hilário "A Glória Escandalosa de Heitor Villa-Lobos" jogou todas as suas cartas no livro ''Pororoca'', do amazonense Vladimir Emmanuel, já que a poesia de ''Viagem'', segundo ele, era "vaga e difusa".


Cassiano Ricardo, no entanto, vaticinou: "Quando o uirapuru canta todos os outros pássaros silenciam". Para amenizar os ânimos, decidiu-se dar o primeiro prêmio para ''Viagem'', não por unanimidade, pois mais uma vez Alceu Amoroso Lima fora voto contra, ao lado de Fernando de Magalhães. E o segundo prêmio acabou nas mãos de Emmanuel.


Escolhida para discursar na entrega dos prêmios, Cecília se viu de novo enredada na malha da política. Seu discurso foi aceito somente após uma minuciosa leitura dos acadêmicos Levi Carneiro e Oswaldo Orico. A censura levou Cecília a recusar-se a ler o texto na cerimônia. E mais uma vez a Academia Brasileira de Letras ficou na lanterninha da história.

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NOTAS: 1. O crítico católico, num jogo de palavras, chama os educadores da Escola Nova de NEP (nova política educacional) em alusão à Nova Política Econômica ─ NEP ─, de Lênin. 2. Manuel Bandeira em "Improviso" de ''Belo, Belo''.










* - Valéria Lamego é jornalista, cursou doutorado em literatura comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicou , pela Editora Record, o livro ''A Farpa na Lira'', sobre a atuação jornalística de Cecília Meireles. Também é curadora do Laboratório do Escritor.

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