EGITO GONÇALVES

EGITO GONÇALVES (Matosinhos, 1920 - Porto, 2001)










Poeta, editor e tradutor. Depois de efectuar estudos técnicos na cidade do Porto, onde vive desde 1948, Egito Gonçalves iniciou a sua actividade literária durante o serviço militar em Ponta Delgada (Açores), tendo publicado os primeiros livros em 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora, tendo igualmente chefiado o Gabinete de Marketing de uma Seguradora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68; publicada pelo Cineclube do Porto) e, mais recentemente, desde 1992, Limiar, ainda em curso de publicação; actualmente é director da colecção de poesia "Os olhos e a memória", da editora portuense Limiar. Importantes para a divulgação da poesia dos anos cinquenta e sessenta, quer de carácter neo-realista, quer surrealista, é de assinalar que participaram nestas revistas autores de ambas as vertentes, bem como de correntes anteriores, entre os quais José Gomes Ferreira, Alexandre Pinheiro Torres, Mário Cesariny, Adolfo Casais Monteiro. Nos "fascículos de poesia" Notícias do Bloqueio, sem uma dimensão ideológica explícita, colaboraram, no entanto, autores de poesia empenhada, bem como autores africanos (Angola e Moçambique): José Craveirinha, Rui Knopfli, Agostinho Neto. Egito Gonçalves participou em vários movimentos anti-fascistas, no plano cultural e no da acção política da oposição democrática, tendo pertencido ao M.U.D. e às Comissões Nacional e Executiva do III Congresso de Aveiro, e desenvolveu actividades de animação cultural no Porto, tendo pertencido à direcção do Teatro Experimental do Porto, do Cineclube do Porto, da Cooperativa Árvore e da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, assim como integrou organismos nacionais: Sociedade Portuguesa de Escritores (Delegação Norte), Associação Portuguesa de Escritores, Sociedade Portuguesa de Autores e PEN Clube Português. Internacionalmente, pertenceu ao "Congresso para a Liberdade da Cultura" (França) e à "Comunitá Europea degli Scrittori" (Itália). É membro da "Hispanic Society of America" (Nova Iorque) e foi correspondente do "Centre International d'Études Poétiques" (Bélgica). Tem-se dedicado também à tradução de poesia, sendo autor de uma Antologia da Poesia Espanhola do Após-Guerra (1962) bem como de recolhas de poetas como Pier Paolo Pasolini, Nicola Vaptzarov, Attila Józef, Yannis Ritsos, Roberto Juarroz, Eeva Liisa-Männer, Guillevic, Derek Walcott, etc. Foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa - 1977, com a sua selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Obteve ainda o Prémio de Poesia do Pen Clube - 1995 e o Grande Prémio de Poesia da APE com o seu livro E No Entanto Move-se (1995), obra que teve igualmente o Prémio Complementar Eça de Queirós, da Câmara Municipal de Lisboa. Em 1994 foi condecorado pelo Presidente da República com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. É também condecorado com a Ordem de Cirilo e Metódio (1ª classe) do Estado Búlgaro, tem a medalha "Pro Cultura Hungarica" do Governo Húngaro, a Medalha de Bronze da "Renaissance International des Arts et des Lettres" de Paris e a Medalha de Mérito Dourado, concedida pelo Município de Matosinhos, cidade em que nasceu. Iniciada nos anos 50, com a publicação de Poemas Para os Companheiros da Ilha , a obra de Egito Gonçalves move-se entre os postulados quer de referencialidade espacio-temporal - nas suas vertentes testemunhal e intimista -, quer de reflexão metapoética. Se o pendor realista da sua poesia remete para um processo dialogal com o real - paisagens, cidades, viagens -, trata-se de "viver com o país / a mesma linguagem", (Poemas Políticos). Assim estão mutuamente implicados quer o entendimento da escrita como a "reconstituição de um / alfabeto" (Destruição: Dois Pontos), quer a consequente importância mnemónica das imagens poéticas e geográficas: pelo modo de subjectivação do tempo e seus ciclos (em que está presente a noção de isocronia), a poesia de Egito Gonçalves opera um duplo reenvio ao exterior e à interioridade. Na exploração desta interioridade se insere uma outra importante vertente da sua poesia, a da lírica do amor, bem evidente, por exemplo, em Mapa do Tesouro: se esta poesia em prosa é movida pelo "funcionamento centrípeto em torno dos sentimentos e da sua sombra", trata-se não só de nomear "a mão feliz que guiou o itinerário / ao longo dos sinuosos veios deste mapa" - o objecto do amor-, mas também de "receb[er] o [...] rosto na ausência, impresso no papel como se saísse de um espelho". A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano (Crespo, Angel, Treinta Poemas...de E.G., Espanha, 1962).



(in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa.)



SOBRE OS POEMAS

1

Há poetas que constróem o mundo nos cafés,
outros que o fazem no claro-escuro
entre as prisões e os intervalos.

Há poetas que aguardam cartas de apresentação
nem eles sabem para onde:
para a vida que falhou?, para a manteiga
que lhes foi negada?

Mas todos têm um sonho, todos
se esforçam por valer o pão que amasssam
− lançam seu delicado peso na balança.

Eles sabem, esses poetas,
que nada é eterno e imutável.

2

Tal a “Cadeia de Santo Onofre:
copie o texto: envie a cinco amigos”...
há poetas que se multiplicam, fendem
a vaga limite, impedem o suicídio,
explicam a vida, argamassam
dedicação e raiva.

Girassóis, rodam sobre si mesmos,
indicam o ponto onde a luz se abre.

3

Há poetas cuja poesia reagrupa, fornece
uma canção à cidade, martela
os que dormem alheios, move-se
silenciosamente ao jeito das estátuas.

Pacífica vaca ruminando na linha do rumo;
rosto impreciso solidificando breve;
tênue tinta azul no papel claro...

Os poetas têm
como os pele-vermelhas do cinema
o seu fumo e os seus cobertores.

4

Há poetas que renegam cartas
de apresentação para o arrivismo;
recusam a mão ao salário da trampa;
não enfeixam o nome e a desonra
nos telegrama do medo.

Enquanto bebem o café um histrião noturno
arenga; excuta o seu número; recebe
por nova pirueta uma ajuda de custo.
























LÍNGUA PORTUGUESA – UM OCEANO DE CULTURAS


Muda-se o tema, onde o mar começa.
A aventura é o mar ou essa forma
que se forma depois, que vai viver
na memória dos dias? De uma ilha lembro
onde o mar me levou e do conhecimento
várias portas me abriu. O oceano
começava antes, acabava depois, ali
só prosseguia, embalando-me em noites
de velame abatido, de fáceis ananases,
de alta mastreação tocada de saudade
lucilante como a esteira do luar.
Mais tarde soube que estava sem trabalho
pois não havia Índias nem de infantas
o prémio de um sorriso. Mas combates
havia para outros, torpedos e canhões
longe não andavam. Daquela guerra
eu só fingia ser. Ancorado veleiro
eu pensaria a ilha, verde como o slogan,
nela não enjoava como, sobre o mar,
me acontecia nos navios da Insulana.
Marinheiro, eu não era. O mundo antigo
vivia-se nos livros, reproduções offset
multiplicavam os atlas, alguns poetas
banhariam na Grécia os seus poemas. Eu,
estava ali, parado no tempo, onde
o mar começava e acabava, esperando
que na praça da Matriz o relógio do sono
badalasse o regresso. A minha casa
estava a oriente, ali acabaria
para mim o mar, e só quando da praia
o visse, a imaginação poderia segredar-me
que os meus pés começava e da viagem
seria excluído. Um rosto sem segredos
que as marés negras adoecem, e me acena
quando o avião desce e os motores destroçam
um mar de nuvens que se desfaz e recomeça.



PANFLETO CONTRA O PANFLETO


(sob a forma de conselhos a um jovem poeta)



Se uma imagem te surge no lance de um poema

usa-a para o amor – jamais para a política.


Há sempre a pôr em verso duas coxas;

há sempre um coito, real ou imaginado,

com que esquives armadilhas panfletárias.


Os campos de concentração, as guerras,

os estados de angústia, não abundam

a arte em que propões engrandecer-te.


Fala do teu exílio, da infância perdida,

do castelo em que vives após o escritório.


Não te é vedado o rumo das flores, mas sempre

longe da campa de inúteis fuzilados.

Desabrocha-as no orvalho. Elas servem

para iluminar o quarto… aquele… tu sabes!


Se recorres às rosas faze que sejam branca

se elimina as papoilas por motivo igual.

Não despistes a caneta em perigos inglórios:

os caçadores de símbolos

são graves e desconfiados.





NOTÍCIAS DO BLOQUEIO

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirá do coração o que sofremos
nos dias que bem embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
Que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
Como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos do silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
e segredo das torres que nos erguem,
e suspensas delas uma torre em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhe que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e o víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.

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