RIMBAUD


 ARTHUR RIMBAUD

Iluminuras (Gravuras Coloridas), ou Illuminations (Painted Plates), editado pela primeira vez em 1886, é o testamento poético do enigma Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1991), um dos maiores mestres da poesia de todos os tempos. 

Escrito provavelmente entre 1873 e 1875 em suas fugas e passagens por Londres, Paris, interior da Alemanha, Holanda e Dinamarca, pouco antes de dar adeus à literatura. Iluminuras (Gravuras Coloridas) é uma obra-prima da modernidade, uma espécie de As Metamorfoses da Era Industrial.

Há um século apaixonando e alimentando diversas gerações de leitores, ela foi capaz de influenciar escritores tão diferentes como Proust, D. H. Lawrence, Artaud, Pound, Beckett, Burroughs ou Jim Morrison. Escritas dos 19 aos 21 anos, é a anotação madura de um poeta nômade, em transe, em trânsito, que rompeu com as convenções poéticas, estéticas e sexuais de sua época.

O que há na poesia e existência de Rimbaud que tanto nos fascina, nos aterroriza, nos choca? Sua atração fatal pela vida e pela poesia?

Iluminuras traz definitivamente a aplicação dos seus princípios poéticos de “alquimia verbal”, “pensamento cantado”, seguindo a ideia de que “o poeta se faz vidente por um longo, imenso, e racional desregramento de todos os sentidos”, com todos os sentidos que a palavra abriga.

Como definir esses 42 quadro-a-quadro poéticos: paisagens de sonho, alegorias urbanas, experimentos com pastiches e gêneros, gravuras coloridas, cenas vaudeville, diários de flânerie, pintura escrita?

Como diz Leo Bersani: “Longe de ser uma película protetora entre nós e a complexidade psicológica e secreta do poeta, a linguagem em Iluminuras chega a ser ofuscada pela própria luminosidade das telas que a linguagem evoca. Tudo se destina – como num número de circo espetacularmente vulgar – a fascinar nossos olhos, tornando impossível para nós desviar nossa visão saturada da cena hipnótica.

Trazendo à luz sua “poesia objetiva”, suas elipses violentas, sua sintaxe bizarra, os poemas em prosa de Iluminuras revelam a força do pensamento imagético de Rimbaud no seu auge. Suas imagens não são formas estáticas de realidade, e sim imagens e ideias em constante metamorfose, “duração”. O caráter dinâmico e a intensidade da poesia de Rimbaud estão intimamente ligados com os movimentos de seu corpo e sua mente, inaugurando uma arte do trajeto, de alguém “com pressa de achar o lugar e a fórmula”.

Talvez o mais perturbador em Rimbaud não esteja em seu silêncio e seu exílio enigmático sobre as páginas em branco da Abissínia, e sim num trecho de “Juventude”:

 “Tua memória e teus sentidos serão o único alimento de teu impulso criativo.”         
   
Texto da orelha de Iluminuras: gravuras coloridas, de Arthur Rimbaud, escrito pelos tradutores – Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, publicado pela Iluminuras, São Paulo, em 2002, edição da qual extraí os poemas.

As pinturas são do extraordinário Wesley Duke Lee.


MATINÉE D’IVRESSE

     O mon Bien! O mon Beau! Fanfare atroce où je ne trébuche point! Chevalet féerique! Hourra pour l’oeuvre inouïe et pour le corps merveilleux, pour la première fois! Cela commença sous les rires des enfants, cela finira par eux. Ce poison va rester dans toutes nos veines même quand, la fanfare tournant, nous serons rendus à l’ancienne inharmonie. O maintenant nous si digne de ces tortures! rassemblons fervemment cette promesse surhumaine faite à notre corps et à notre âme créés: cette promesse, cette démence! L’élégance, la science, la violence! On nous a promis d’enterrer dans l’ombre l’arbre du bien et du mal, de déporter les honnêtetés tyranniques, afin que nous amenions notre très pur amour. Cela commença par qualquer dégoûts et cela finit, - ne pouvant nous saisir sur-le-champ de cette éternité, - cela finit par une débandade de parfums.

    Rire des enfants, discrétion des esclaves, austérité des vierges, horreur des figures et des objets d’ici, sacrés soyez-vous par le souvenir de cette veille. Cela commençait par toute la rustrerie, voici que cela finit para des anges de flamme et de glace.

     Petite veille d’ivresse, sainte! quand ce ne serait que pour le masque dont tu nous as gratifié. Nous t’affirmons, méthode! Nous n’oublions pas que tu as glorifié hier chacun de nos âges. Nous avons foi au poison. Nous savon donner notre vie tout entière tous les jours.

     Voici le temps de Assassins.


MANHÃ DE EMBRIAGUEZ       

     Ó meu Bem! Ó meu Belo! Fanfarra atroz em que não tropeço mais! Cavalete feérico! Viva a obra inaudita e o corpo maravilhoso, pela primeira vez! Isto começou com risos infantis, e terminará assim. Esse veneno vai ficar em nossas veias mesmo depois da fanfarra volver, quando voltarmos à antiga desarmonia. Ó agora nós, tão digno dessas torturas! Unamos com fervor essa promessa super-humana feita a nossos corpos e almas criados: essa promessa, essa demência! Elegância, ciência, violência! Prometeram-nos enterrar na sombra a árvore do bem e do mal, desterrar as honestidades tirânicas, a fim de que levássemos nosso amor tão puro. Isto começou com uma certa náusea e acaba assim, - não podendo nos apanhar desta eternidade, de repente, - isto termina numa fuga de perfumes.

     Risos infantis, discrição de escravos, rigor de virgens, horror das figuras e dos objetos daqui, sagrado sejas em memória da vigília. Isso começava com toda grosseira, eis que termina com anjos de fogo e gelo.

     Breve vigília de embriaguez, santa! não fosse só pela graça dessa máscara que nos destes! Nós te afirmamos, método! Não esquecemos da glória com que ontem honrastes nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos doar nossa vida inteira, todo dia.

     Este é o tempo dos Assassinos.



VILLE

     Je suis un éphémère et point trop mécontent citoyen d’une métropole crue moderne parce que tout goût connu a étê éludé dans les ameublements et l’extérieur des maisons aussi bien que dans le plan de la ville. Ici vous ne signaleriez les traces d’aucun monument de superstition. La morale et la langue sont réduites à leur plus simple expression, enfin! Ces millions de gens qui n’ont pas besoin de se connaître amènent si páreillement l’éducation, le métier et la vieillesse, que ce cours de vie doit être plusieurs fois moins long que ce qu’une statistique folle trouve pour les peuples du continent. Aussi comme, de ma fenêtre, je vois des spectres nouveaux roulant à travers 1’épaisse et éternelle fumée de charbon, - notre ombre des bois, notre nuit d’été! – des Erinnyes nouvelles, devant mon cottage qui est ma patrie et tout mon coeur puisque tout ici ressemble à ceci, - la Mort sans pleurs, notre active fille et servante, un Amour désespéré, et un joli Crime piaulant dans la boue de la rue.


CIDADE

     Sou um efêmero e não muito descontente cidadão de uma metrópole que julgam moderna porque todo estilo conhecido foi excluído das mobílias e do exterior das casas bem como da planta da cidade. Aqui você não nota rastros de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua estão reduzidas às expressões mais simples, enfim! Estes milhões de pessoas que nem têm necessidade de se conhecer levam a educação, o trabalho e a velhice de um modo tão igual que sua expectativa de vida é muitas vezes mais curta do que uma estatística louca encontrou para os povos do continente. Assim como, de minha janela, vejo novos espectros rolando pela espessa e eterna fumaça de carvão, - nossa sombra dos bosques, nossa noite de verão! – as Erínias novas, na porta da cabana que é minha pátria e meu coração, já que tudo aqui parece isto, - Morte sem lágrimas, nossa filha ativa e serva, um Amor desesperado, e um Crime bonito uivando na lama da rua.



VILLES

     Ce sont des villes! C’est un peuple pour qui se sont montés ces Alleghanys et ces Libans de revê! Des chalets de cristal et de bois qui se meuvent sur des rails et des poulies invisibles. Les vieux cratères ceints de colosses et de palmiers de cuivre rugissent mélodieusement dans les feux. Des fêtes amoureuses sonnent sur les canaux pendus derrière les chalets. La chasse des carillons crie dans les gorges. Des corporations de chanteurs géants accourent dans des vêtements et des oriflammes éclatants comme la lumière des cimes. Sur les plates-formes au milieu des gouffres les Rolands sonnent leur bravoure. Sur les passerelles de l’abîme e les toits des auberges l’ardeur du ciel pavoise les mâts. L’ecroulement des apothéoses rejoint les champs des hauteurs où les centauresses séraphiques évoluent parmi les avalanches. Au-dessus du niveau des plus hautes crêtes, une mer troublée par la naissance éternelle de Vénus, chargée de flottes orphéoniques et de la rumeur des perles et des conques précieuses, - la mer s’assombrit parfois avec des éclats mortels. Sur les versants des moissons de fleurs grandes comme nos armes et nos coupes, mugissent. Des cortèges de Mabs en robes rousses, opalines, montent des ravines. Là-haut, les pieds dans la cascade et les ronces, les cerfs tettent Diane. Les Bacchantes des banlieues sanglotent et la lune brûle et hurle. Vénus entre dans les cavernes des forgerons et des ermites. Des groupes de beffrois chantent les idées des peuples. Des châteaux bâtis en os sort la musique inconnue. Toutes les légendes évoluent et les élans se ruent dans les bourgs. Le paradis des orages s’effondre. Les sauvages dansent sans cesse la fête de la nuit. Et une heure je suis descendu dans le mouvement d’un boulevard de Bagdad où des compagnies ont chanté la joie du travail nouveau, sous une brise épaisse, circulant sans pouvoir éluder les fabuleux fantômes des monts où l’on a dû se retrouver.

     Quels bons bras, quelle belle heure me rendront cette région d’où viennent mes sommeils et mes moindres mouvements?

CIDADES

     Que cidades! É um povo para o qual foram montados Algonquinos e Líbanos de sonho! Chalés de cristal e madeira deslizam sobre trilhos e polias invisíveis. Crateras ancestrais circundadas de colossos e palmeiras de cobre rugem melodiosamente dentro dos fogos. As festas do amor badalam nos canais suspensos atrás dos chalés. Matilhas de sinos gritam nas gargantas. Associações de cantores gigantes chegam em trajes e adereços cintilantes como a luz nos cimos. Sobre as plataformas, em meio a precipícios, os Rolands buzinam sua bravura. Sobre as passarelas do abismo e os tetos dos albergues, o arder do céu hasteia os mastros. O colapso das apoteoses concentra os campos das alturas onde centaurinas seráficas evoluem entre as avalanches. Acima do nível das mais altas cristas, um mar atormentado pelo eterno nascimento de Vênus, repleto de frotas orfeônicas e do murmúrio de pérolas e conchas preciosas, - às vezes o mar se escurece com brilhos mortais. Nas encostas, safras de flores imensas bramem como nossas armas e taças. Cortejo de Mabs em robes russos, opalinas, trepam nas ravinas. E lá em cima, as patas nas sarças e cascatas, cervo sugam os seios de Diana. Bacantes de subúrbio soluçam e a luta queima e uiva. Vênus penetra nas cavernas de ferreiros e eremitas. Torres de sinos cantam as ideias das pessoas. A música desconhecida escapa dos castelos de osso. Todas as lendas evoluem e veados invadem os burgos. O paraíso de tempestades despedaça. Selvagens dançam sem cessar a festa da noite. E, uma hora, desci na agitação de um bulevar em Bagdá onde companhias cantaram a alegria do trabalho novo, sob uma brisa espessa, circulando sem poder iludir os fantasmas fabulosos dos montes, onde se devia reencontrar.

     Que braços bons, que hora adorável vão me devolver essa região de onde vêm meus sonhos e meus movimentos mais sutis.


 


VAGABONDS

    Pitoyable frère! Que d’atroces veillées je lui dus! “Je ne me saisissais pas fervemment de cette entreprise. Je m’étais joué de son infirmité. Par ma faute nous retournerions en exil, en esclavage.” Il me supposait un guignon et une innocence très bizarres, et il ajoutait des raisons inquiétantes.

     Je répondais en ricanant à ce satanique docteur, et finissais par gagner la fenêtre. Je créais, par delà la campagne traversée par des bandes de musique rare, les fantômes du futur luxe nocturne.

     Après cette distraction vaguement hygiénique je m’étendais sur une paillasse. Et, presque chaque nuit, aussitôt endormi, le pauvre frère se levait, la bouche pourrie, les yeux arrachés, - tel qu’il se rêvait! – et me tirait dans la salle en hurlant son songe de chagrin idiot.

     J’avais en effet, en toute sincérité d’esprit, pris l’engagement de le rendre à son état primitif de fils du Soleil, - et nous errions, nourris du vin des cavernes et du biscuit de la route, moi pressé de trouver le lieu et la formule.


VAGABUNDOS

     Irmão miserável! Quantas vigílias atrozes eu lhe devo! “Eu não me entregava com fervor a este projeto. Caçoava de sua doença. Por minha culpa voltaríamos ao exílio, à escravidão”. Ele me achava um pé frio e de uma inocência bizarra demais, e adicionava razões inquietantes.

     Eu respondia rindo deste doutor satânico, e acabava ganhando a janela. Eu criava, além do campo atravessado por bandas de música rara, os fantasmas do futuro luxo noturno.

     Depois dessa distração ligeiramente higiênica, me deitava numa esteira. E, quase toda noite, assim que dormia, o pobre irmão se levantava, boca podre, olhos esbugalhados, - como ele se sonhava! – e me arrastava pela sala, uivando o sonho de sua mágoa idiota.

     Eu tinha prometido, de fato, do fundo do coração, recuperar seu estado primitivo de filho do Sol, - e vadiávamos, alimentados pelo vinho das cavernas e pelo biscoito do caminho, eu com pressa de achar o lugar e a fórmula.

Comentários

  1. Em seu blog respira-se cultura e arte! Não há como sair imune daqui.

    BEIJÃO!

    Adorei a dica do livro do Manoel de Barros na barra lateral.

    Fantástico tudo por aqui! PARABÉNSSSS!!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário