WISLAWA SZYMBORSKA
Wislawa Szymborska nasceu em 1923, na cidade de Kórnik, na Polônia. Quando ainda criança, sua família mudou-se para Cracóvia, um dos mais ativos centros culturais da Polônia, e a poeta cresceria e permaneceria toda a sua vida nesta cidade. Sua vida literária e artística inicia-se durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto segue com sua educação nos anos subterrâneos da resistência cultural polonesa contra a ocupação nazista. Com o fim da guerra, passa a estudar sociologia, além de língua e literatura polonesas, na Universidade de Cracóvia.
Seu primeiro livro é proibido pela censura do regime comunista por não estar de acordo com os regulamentos da literatura socialista. Tenta conformar-se às regras para conseguir publicar, rejeitando mais tarde, a partir da década de 50, a ideologia político-estética socialista. Nega seus dois primeiros livros e “reinicia” sua obra com o volume Wołanie do Yeti (Chamando Yeti), de 1957. Em 1962, chama a atenção da comunidade poética polonesa com o pequeno volume Sól (Sal). Desde então, seu trabalho espraia-se por pouco mais de 10 volumes de poemas, o último tendo sido publicado em 2005, com o título Dwukropek (“Dois pontos”, como no sinal de pontuação). Wislawa Szymborska era uma discreta poeta polonesa até tornar-se mundialmente conhecida em 1996, ao vencer o Prêmio Nobel de Literatura.
Para contextualizarmos o trabalho de Wislawa Szymborska em seu momento histórico-poético, teríamos que compreender que este surge em um período confuso e de classificação ainda polêmica quando, no pós-guerra, muitos poetas modernistas ainda estavam vivos e produzindo suas maiores obras, e uma nova geração começava a formar-se, alguns buscando ser ainda "altos modernistas", outros seguindo tendências menos conhecidas dos movimentos de vanguarda e retaguarda do início do século XX. Wislawa Szymborska é contemporânea de poetas como João Cabral de Melo Neto, Paul Celan, Frank O´Hara, Robert Creeley e Ingeborg Bachmann, que retomam o trabalho literário dos primeiros modernistas. Ao mesmo tempo, é contemporânea de poetas experimentais como Henri Chopin e Bob Cobbing, mostrando a pluralidade poética do pós-guerra como algo muito mais complexo do que nossa tentativa de abarcá-la sob a sombrinha do conceito de "pós-modernismo".
Talvez seja uma das últimas representantes de algumas das tendências do que geralmente chamamos, no singular, de Alto Modernismo. Com um humor muitas vezes auto-depreciativo, a ironia é uma de suas ferramentas favoritas. Há um texto interessante de W.H. Auden em que ele discute traduções do trabalho de Konstantínos Kaváfis para o inglês, comentando o módulo de pensamento do poeta grego que, segundo Auden, permitia reconhecermos um poema de Kaváfis em qualquer língua, não por um estilo específico do que nós hoje chamaríamos de materialidade sígnica de sua linguagem poética, mas por certo tom e forma de pensamento que tornavam seus poemas únicos e ao mesmo tempo compreensíveis em outras culturas e línguas. Sem conhecer polonês, torna-se impossível julgar a materialidade sígnica da poesia de Wislawa Szymborska. Pergunto-me, porém, se poderíamos falar de seu trabalho em termos parecidos aos de Auden sobre Kaváfis. Tendo lido traduções para poemas da polonesa em português, inglês, espanhol e alemão, e reconhecendo sempre este "módulo de pensamento", este "tom" inconfundível, poderia dizer que Szymborska é um belíssimo exemplo do "verso livre" que depende de um talento poético invulgar em seus mais sutis artifícios.
Texto do excelente poeta Ricardo Domeneck, publicado originalmente em 03.11. 2008 na revista Modo de Usar, leitura obrigatória para todos aqueles que gostam de poesia. O link da revista é http://revistamododeusar.blogspot.com/. Fiz apenas a seleção dos poemas.
POEMAS
Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio.
Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes.
Uma boa lâmpada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais.
Buda sereno, Jesus doloroso,
sete elefantes para boa sorte, e na gaveta - um caderno.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?
Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes.
Uma boa lâmpada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais.
Buda sereno, Jesus doloroso,
sete elefantes para boa sorte, e na gaveta - um caderno.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?
Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial,
Alegria, a faísca dos deuses,
a corneta consolatória nas mãos negras.
Na estante, Ulisses repousando
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os rnoralistas,
seus nomes em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Os políticos ao lado, muito retos.
Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial,
Alegria, a faísca dos deuses,
a corneta consolatória nas mãos negras.
Na estante, Ulisses repousando
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os rnoralistas,
seus nomes em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Os políticos ao lado, muito retos.
E não era sem saída este quarto,
aos menos pela porta,
nem sem vista, ao menos pela janela.
Binóculos de longo alcance no parapeito.
Uma mosca zumbindo - ou seja, ainda viva.
aos menos pela porta,
nem sem vista, ao menos pela janela.
Binóculos de longo alcance no parapeito.
Uma mosca zumbindo - ou seja, ainda viva.
Acham então que talvez uma carta explicava algo.
Mas se eu disser que não havia carta nenhuma -
éramos tantos, os amigos, e todos coubemos
dentro de um envelope vazio encostado num copo.
Mas se eu disser que não havia carta nenhuma -
éramos tantos, os amigos, e todos coubemos
dentro de um envelope vazio encostado num copo.
Tradução: Ana Cristina Cesar em colaboração com a polonesa Grazyna Drabik.
Retornos
Voltou. Não disse nada.
Parecia muito perturbado.
Deitou sem tirar a roupa.
Escondeu-se debaixo do cobertor,
as pernas dobradas.
Tem quarenta anos, mas não neste momento.
Está vivo - mas como no ventre materno
atrás de sete peles, na escuridão que o defende.
Amanhã dá palestra sobre homeostasis
na cosmonáutica metagalática.
Por enquanto se encolhe, adormece.
Parecia muito perturbado.
Deitou sem tirar a roupa.
Escondeu-se debaixo do cobertor,
as pernas dobradas.
Tem quarenta anos, mas não neste momento.
Está vivo - mas como no ventre materno
atrás de sete peles, na escuridão que o defende.
Amanhã dá palestra sobre homeostasis
na cosmonáutica metagalática.
Por enquanto se encolhe, adormece.
Tradução: Ana Cristina Cesar em colaboração com a polonesa Grazyna Drabik.
Os filhos da época
Somos os filhos da época,
e a época é política.
Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra - político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.
Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.
Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.
Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.
e a época é política.
Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra - político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.
Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.
Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.
Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.
Tradução: Ana Cristina Cesar em colaboração com a polonesa Grazyna Drabik.
Céu
Era preciso começar daí: céu.
Janela sem encosto, sem moldura, sem vidraça.
Abertura e nada mais, porém muito bem aberta.
Não preciso aguardar a noite amena:
nem levantar a cabeça
para perscrutar o céu.
Tenho céu atrás de mim, sob as mãos
e debaixo das pálpebras.
Estou enredada de céu
e isto me exalta.
Nem as montanhas mais altas
Estão mais próximas do céu
que os vales mais profundos.
Não há mais céu num lugar
do que em outro.
A nuvem está atada ao céu
indiferente como o túmulo.
A toupeira é tão feliz
quanto a coruja que abre as asas.
O objeto que cai no precipício
cai do céu no céu.
Partes poeirentas, líquidas, montanhosas,
passageiras e queimadas do céu, migalhas do céu,
brisas de céu e montes.
O céu é onipresente
até nas trevas sob a pele.
Devoro o céu, rejeito o céu.
Estou com armadilhas na armadilha,
com o habitante instalado,
com o abraço abraçado,
com a pergunta presente na resposta.
A divisão entre céu e terra
não foi pensada de forma adequada
a respeito desta unidade.
Permite até que se sobreviva
no endereço mais exato,
que pode ser achado mais depressa
se me procurarem.
Os meus sinais característicos são
o arrebatamento e o desespero.
Janela sem encosto, sem moldura, sem vidraça.
Abertura e nada mais, porém muito bem aberta.
Não preciso aguardar a noite amena:
nem levantar a cabeça
para perscrutar o céu.
Tenho céu atrás de mim, sob as mãos
e debaixo das pálpebras.
Estou enredada de céu
e isto me exalta.
Nem as montanhas mais altas
Estão mais próximas do céu
que os vales mais profundos.
Não há mais céu num lugar
do que em outro.
A nuvem está atada ao céu
indiferente como o túmulo.
A toupeira é tão feliz
quanto a coruja que abre as asas.
O objeto que cai no precipício
cai do céu no céu.
Partes poeirentas, líquidas, montanhosas,
passageiras e queimadas do céu, migalhas do céu,
brisas de céu e montes.
O céu é onipresente
até nas trevas sob a pele.
Devoro o céu, rejeito o céu.
Estou com armadilhas na armadilha,
com o habitante instalado,
com o abraço abraçado,
com a pergunta presente na resposta.
A divisão entre céu e terra
não foi pensada de forma adequada
a respeito desta unidade.
Permite até que se sobreviva
no endereço mais exato,
que pode ser achado mais depressa
se me procurarem.
Os meus sinais característicos são
o arrebatamento e o desespero.
In Antologia de 63 poetas eslavos. Tradução e organização Aleksandar Jovanovic. Editora Hucitec, São Paulo, 1996.
Museu
Há pratos, mas falta apetite
Há alianças, mas falta reciprocidade
pelo menos desde há 300 anos.
Há o leque - onde os rubores?
Há espadas - onde há ira?
E o alaúde nem tange à hora gris.
Por falta de eternidade juntaram
Dez mil coisas velhas.
Um guarda musgoso cochila docemente,
com os bigodes caindo sobre a vitrine.
Metais, barro, plumas de ave
Triunfam silenciosamente no tempo.
Apenas um alfinete da galhofeira do Egito ri zombeteiro.
A coroa deixou passar a cabeça.
A mão perdeu a luva.
A bota direita prevaleceu sobre a perna.
Quanto a mim, vivo, acreditem por favor.
Minha corrida com o vestido continua
E que resistência tem ele!
E como ele gostaria de sobreviver!
Há alianças, mas falta reciprocidade
pelo menos desde há 300 anos.
Há o leque - onde os rubores?
Há espadas - onde há ira?
E o alaúde nem tange à hora gris.
Por falta de eternidade juntaram
Dez mil coisas velhas.
Um guarda musgoso cochila docemente,
com os bigodes caindo sobre a vitrine.
Metais, barro, plumas de ave
Triunfam silenciosamente no tempo.
Apenas um alfinete da galhofeira do Egito ri zombeteiro.
A coroa deixou passar a cabeça.
A mão perdeu a luva.
A bota direita prevaleceu sobre a perna.
Quanto a mim, vivo, acreditem por favor.
Minha corrida com o vestido continua
E que resistência tem ele!
E como ele gostaria de sobreviver!
In Quatro poetas poloneses. Organização e tradução Henrik Siewierski e José Santiago - edição da Secretaria de Cultura do Paraná, 1995.
PI
O admirável número pi:
três vírgula um quatro um.
Todos os dígitos seguintes são apenas o começo,
cinco nove dois porque ele nunca termina.
Não se pode capturá-lo seis cinco três cinco com um olhar,
oito nove com o cálculo,
sete nove ou com a imaginação,
nem mesmo três dois três oito comparando-o de brincadeira
quatro seis com qualquer outra coisa
dois seis quatro três deste mundo.
A cobra mais comprida do planeta se estende por alguns metros e acaba.
Também são assim, embora mais longas, as serpentes das fábulas.
O cortejo de algarismos do número pi
alcança o final da página e não se detém.
Avança, percorre a mesa, o ar, marcha
sobre o muro, uma folha, um ninho de pássaro, nuvens, e chega ao céu,
até perder-se na insondável imensidão.
A cauda do cometa é minúscula como a de um rato!
Como é frágil um raio de estrela, que se curva em qualquer espaço!
E aqui dois três quinze trezentos dezenove
meu número de telefone o número de tua camisa
o ano mil novecentos e setenta e três sexto andar
o número de habitantes sessenta e cinco centavos
a medida da cintura dois dedos uma charada um código,
no qual voa e canta descuidado um sabiá!
Por favor, mantenham-se calmos, senhoras e senhores,
céus e terra passarão
mas não o número pi, nunca, jamais.
Ele continua com seu extraordinário cinco,
seu refinado oito,
seu nunca derradeiro sete,
empurrando, arf, sempre empurrando a preguiçosa
eternidade.
Tradução: Carlos Machado (traduzido de versão inglesa)
Autotomia
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
Tradução coletiva, publicado em Inimigo Rumor 10.
Amor à primeira vista
Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.
Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?
Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.
Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.
Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.
Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?
Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.
Tradução de Júlio Sousa Gomes, em Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.
Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.
Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?
Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.
Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.
Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.
Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?
Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.
Tradução de Júlio Sousa Gomes, em Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.
Na torre de Babel
— Que horas são? — Sim, estou feliz
e só me falta um guizo no pescoço
para enquanto tu dormes ele retinir sobre ti.
— Não ouviste então a tempestade? O vento assolou as muralhas,
a torre urrou como um leão pelo portão
a ranger nas dobradiças. — Como é que podes não te lembrar?
Eu trazia um vestido cinzento muito simples
de abotoar nos ombros. — E logo a seguir
o céu explodiu em mil clarões. — Como é que eu podia entrar
se tu não estavas sozinho! — E vi de súbito
as cores de antes de haver olhar. — É pena
que não possas perdoar-me. — Tens toda a razão,
foi um sonho de certeza. — Por que é que mentes?
Por que me tratas pelo nome dela?
Amá-la ainda? — Sim! Queria muito
que ficasses comigo. — Não estou triste,
eu devia ter adivinhado.
— Ainda pensar nele? — Não estou a chorar!
— E é tudo? — De ninguém como de ti.
— Pelo menos és sincera. — Fica tranquilo,
vou-me embora da cidade. — Fica tranquilo,
eu vou-me embora daqui. — Tens umas mãos tão bonitas.
— É uma velha história. Foi duro
mas passou sem deixar mossas. — Não tem de quê,
meu caro, não tem de quê. — Não sei
que horas são e nem quero saber.
Tradução de Júlio Sousa Gomes, em Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.
— Que horas são? — Sim, estou feliz
e só me falta um guizo no pescoço
para enquanto tu dormes ele retinir sobre ti.
— Não ouviste então a tempestade? O vento assolou as muralhas,
a torre urrou como um leão pelo portão
a ranger nas dobradiças. — Como é que podes não te lembrar?
Eu trazia um vestido cinzento muito simples
de abotoar nos ombros. — E logo a seguir
o céu explodiu em mil clarões. — Como é que eu podia entrar
se tu não estavas sozinho! — E vi de súbito
as cores de antes de haver olhar. — É pena
que não possas perdoar-me. — Tens toda a razão,
foi um sonho de certeza. — Por que é que mentes?
Por que me tratas pelo nome dela?
Amá-la ainda? — Sim! Queria muito
que ficasses comigo. — Não estou triste,
eu devia ter adivinhado.
— Ainda pensar nele? — Não estou a chorar!
— E é tudo? — De ninguém como de ti.
— Pelo menos és sincera. — Fica tranquilo,
vou-me embora da cidade. — Fica tranquilo,
eu vou-me embora daqui. — Tens umas mãos tão bonitas.
— É uma velha história. Foi duro
mas passou sem deixar mossas. — Não tem de quê,
meu caro, não tem de quê. — Não sei
que horas são e nem quero saber.
Tradução de Júlio Sousa Gomes, em Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.
Gente na ponte
Estranho planeta e nele estranha gente.
Cedem ao tempo e não o querem reconhecer.
Têm maneiras de mostrar como se opõem.
Fazem desenhos como o que se segue:
Nada de especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma de suas margens.
Uma canoa que com dificuldade avança na corrente.
Sobre a água uma ponte e gente nessa ponte.
Gente que nitidamente acelera o passo
porque de uma nuvem negra
a chuva desatou forte a fustigar.
O que há nisto de especial é que isto é tudo.
A nuvem não muda de forma nem de cor.
A chuva não cai mais forte nem se interrompe.
A canoa navega imobilizada.
Essa gente na ponte vai correndo
no exacto lugar de há um bocado.
É difícil deixar de comentar:
Não é de modo algum um desenho inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixaram de contar com os seus direitos.
Privaram-no de influência sobre os acontecimentos.
Menosprezam-no e insultaram-no.
Por conta de um rebelde,
um tal de Hiroshige Utagawy
(ser este que de resto
já há muito e como devia ser se foi)
o tempo tropeçou e caiu.
Talvez se trate só de uma partida insignificante,
um cisco apenas à escala das galáxias,
pelo sim, contudo, e pelo não
acrescentemos o que segue:
Revela-se aqui ser de bom-tom
apreciar devidamente este desenho,
fascinar-se a gente com ele e comover-se há gerações.
Há aqueles para os quais nem isto basta.
Chegam até a ouvir a chuva murmurar,
sentem-lhe o frio nas costas e pescoços,
olham a gente e a ponte
como se também se vissem nela,
no mesmo correr para o que nunca é mais que isso,
uma estrada sem fim, a vencer pelos séculos,
e crêem na sua desfaçatez
que é isso na realidade o que acontece.
Tradução de Júlio Sousa Gomes, em Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.
Estranho planeta e nele estranha gente.
Cedem ao tempo e não o querem reconhecer.
Têm maneiras de mostrar como se opõem.
Fazem desenhos como o que se segue:
Nada de especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma de suas margens.
Uma canoa que com dificuldade avança na corrente.
Sobre a água uma ponte e gente nessa ponte.
Gente que nitidamente acelera o passo
porque de uma nuvem negra
a chuva desatou forte a fustigar.
O que há nisto de especial é que isto é tudo.
A nuvem não muda de forma nem de cor.
A chuva não cai mais forte nem se interrompe.
A canoa navega imobilizada.
Essa gente na ponte vai correndo
no exacto lugar de há um bocado.
É difícil deixar de comentar:
Não é de modo algum um desenho inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixaram de contar com os seus direitos.
Privaram-no de influência sobre os acontecimentos.
Menosprezam-no e insultaram-no.
Por conta de um rebelde,
um tal de Hiroshige Utagawy
(ser este que de resto
já há muito e como devia ser se foi)
o tempo tropeçou e caiu.
Talvez se trate só de uma partida insignificante,
um cisco apenas à escala das galáxias,
pelo sim, contudo, e pelo não
acrescentemos o que segue:
Revela-se aqui ser de bom-tom
apreciar devidamente este desenho,
fascinar-se a gente com ele e comover-se há gerações.
Há aqueles para os quais nem isto basta.
Chegam até a ouvir a chuva murmurar,
sentem-lhe o frio nas costas e pescoços,
olham a gente e a ponte
como se também se vissem nela,
no mesmo correr para o que nunca é mais que isso,
uma estrada sem fim, a vencer pelos séculos,
e crêem na sua desfaçatez
que é isso na realidade o que acontece.
Tradução de Júlio Sousa Gomes, em Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.
As três palavras mais estranhas
Quando pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.
Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.
Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.
Tradução: Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves
de Alguns gostam de poesia- Antologia- Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbroska, Cavalo de Ferro, 2004
Me amarrei no " As três palavras mais estranhas". Simplesmente magnífico.
ResponderExcluirMarcelino, realmente é um poema maravilhoso. Confesso que só passei a conhecer a poesia dessa polonesa do balacobaco há pouco tempo. Fiquei totalmene encantado.
ResponderExcluirMuito lindo o poema As três palavras mais estranhas! Adorei!
ResponderExcluirLi todos, lindos e viciantes. É um dos meus estilo de poesia preferidos.
ResponderExcluirGrande abraço!
Olá! Sabe dizer porque nas traduçoes ao português que encontrei online o poema Folheto é mais breve? Em espanhol tem muitos versos a mais, e o poema recebe outro sentido
ResponderExcluirDesculpe a demora. Não sei responder. Encontrei, no entanto, esta tradução , que me parece completa, no blog português "O meljhor amigo" (http://omelhoramigo.blogspot.com/2012/02/folheto.html)
ExcluirFolheto
Sou o comprimido calmante.
Actuo em casa,
sou eficaz na repartição,
sento-me no exame,
apresento-me em tribunal,
colo minuciosamente a louça partida.
Basta que me tomes,
que me ponhas debaixo da língua,
que me engulas
com um copo de água.
Sei o que fazer na desgraça,
como aguentar a má notícia,
diminuir a injustiça,
desanuviar a falta de Deus,
escolher o chapéu de luto a condizer.
Por que esperas?
Confia na piedade química.
Ainda és jovem,
tens que te governar.
Quem disse que se deve enfrentar a vida?
Entrega-me o teu abismo,
vou aconchegá-lo com o sono,
ser-me-ás grato,
darás a volta por cima.
Vende-me a tua alma.
Não haverá melhor comprador.
Outro diabo já não existe.