GÉRARD DE NERVAL (1808-1885)
O primeiro Nerval a ser conhecido foi o tradutor de Goethe. O segundo o poeta amável das “Odelentes”, o autor de lieder alemães em língua francesa, o lírico delicado dos Petits châteaux de Bohème. O terceiro, e o maior e definitivo, é o visionário, o louco, real e não apenas literário, o criador de mitologias de Aurélia e das “Quimeras”. Como com o Hölderlin da última fase, o preço da travessia do portal que se abre ao mundo invisível foi a loucura, assim como com William Blake ou Swedenborg. Em nenhum desses casos chegáramos ainda à decisão racional e pré-surrealista de ser tornar um “vidente”, como fez Rimbaud, através de um desregramento geral de todos os sentidos teorizado e procurado.
Entramos assim na controversa relação entre gênio e loucura. Poucas obras poéticas, em toda a literatura francesa, deram origem a tão vasta bibliografia como essas duas dezenas de sonetos, na verdade menos que isso, se considerarmos os que são quase variações de outros e partes de outros, estranhamente permutadas. Na tentativa vã de encontrar uma interpretação definitiva todas as doutrinas e escolas de pensamento foram chamadas, da alquimia à psicanálise, da cabala ao orfismo, da teosofia à numerologia, sem que nunca se tenha chegado a um resultado totalmente convincente. De fato, a pan-religiosidade das “Quimeras”, a sua antiortodoxia em relação a qualquer sistema são os índices infalíveis da derrota de toda tentativa de interpretação absoluta. Pois, mais do que uma afirmação da existência de determinada verdade oculta, essa poesia originalíssima é a própria verdade oculta, que se realiza mas não se desvela. Através dela entramos num mundo de sensibilidade desconhecido para nós. Depois dela, apesar de sabermos que lá estivemos, ele permanece desconhecido. Esse é um milagre típico da arte, a possibilidade de penetrar o mistério sem desvendá-lo, o que significaria destruí-lo. E como não perceber que o grande significado intrínseco do mistério é a sua própria permanência, tal como ele é, na iminência potencial de um desvendamento que é o seu predicado mais autêntico?
Figura dócil e discreta do grande momento do Romantismo, biograficamente tendendo a um estado de revêrie muito comum até em individualidades bem secundárias daquele período, Nerval foi pouco a pouco- nutrido de todas as frustrações pessoais e sonhos não cumpridos que acompanham qualquer homem, além de uma continuada leitura dos grandes autores iniciáticos – abrindo a brecha na grande muralha da realidade concreta e indivisível, através da qual, nos seus últimos anos de vida, conceberia o estranho coroamento de sua obra. Nas “Quimeras”, mais do que a estetização de qualquer doutrina, encontramos um puro e intocado anelo do sagrado, alimentado indiscriminadamente de todas as suas manifestações externas, mesmo antagônicas. (...)
Nerval, alimentado há muito por leituras ocultistas, gnósticas, pitagóricas e cabalistas, alem do ambiente romântico favorável a todo o fantástico, viveu pessoalmente o mergulho na floresta das analogias arquetípicas, das genealogias fantásticas, das simbologias delirantes. Anos depois, numa experiência semelhante, Strindeberg vagaria pelas mesmas ruas de Parias procurando nos menores incidentes um sinal escapado da verdadeira ordem oculta do mundo, a autêntica frente da tapeçaria, da qual vemos apenas o reverso que é a verdadeira origem, final e determinação de tudo que nos acontece.
Entrando, como um arqueólogo, no anfiteatro das ciências mortas, tocado para lá por suas frustrações amorosas, biográficas ou outras necessidades mais obscuras e profundas, Nerval se encontra no meio das ruínas de todas as religiões, templos derruídos, estátuas derrubadas, inscrições mutiladas, estranhas arquiteturas sacras de cultos desconhecidos ou mesmo inconciliáveis, mas que no entanto se misturaram no trovão ensurdecedor e escuro de suas quedas concomitantes, perante a pretensa invasão da razão de um século de luzes.
Neste chão juncada de humanidade há símbolos cristãos revestindo deuses egípcios, árvores sagradas gregas crescendo sobre fundamentos de zigurates babilônicos, cordas de liras órficas enroscadas aos rosários de santas peninsulares, e a noite eterna da alma, como a única catedral indestrutível, crescendo sobre tudo.
Ele antão, já o criador de genealogias alucinadas, descente de persas e cruzados, de troncos napoleônicos e normando, como um grande iluminado, como um que realmente em sua vida passou pela experiência do desdobramento, a visão de que todo este universo é apenas um lado da moeda, penetra, feito um novo arquiteto, para reconstruir, em duas dezenas de sonetos, em duas dezenas de “Quimeras”, o seu tempo órfico-céltico.egípcio-pitagórico-cabalístico-cristão, onde ele mesmo, com o sangue mitologicamente nobre que corre em suas veias, é o neófito e o mestre, o sacrificador e a vítima, o sacerdote e o ídolo oculto.
Aí estão as fadas e as rainhas, os dragões mortos e os deuses vingadores, as santas e as grotas impenetráveis, dos quais só uma mente tem a visão e o segredo. E desta confusão de todos os arquétipo, dessa corrida alucinada de todas as analogias, desta compensação sagrada de todas as limitações de nossa vida miserável, desta série de quadros de Moreau pintados com palavras antes que Moreau os pintasse, emergem, pela primeira vez, e nunca tão claramente, o Simbolismo, fonte de toda a poesia moderna, e o Surrealismo, que sempre de alguma maneira impregnou toda a literatura que lhe sucedeu.
Fragmento da introdução de Alexei Bueno ao livro - por ele traduzido - As Quimeras, de Gérard Nerval – Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, do qual retirei os sete poemas abaixo.
EL DESDICHADO
Je suis le Ténébreux, - le Veuf, - l’Inconsolé,
Le Prince d’Aquitaine à la Tour abolie:
Ma seule Etoile est morte, et mon luth constellé
Porte le Soleil noir de la Mélancolie.
Dans la nuit du Tombeau, Toi qui m’as consolé,
Rends-moi le Pausilippe et la mer d’Italie,
La fleur qui plaisait tant à mon coeur désolé,
Et la treille ou le Pampre à la Rose s’allie.
Suis-je Amour ou Phébus?... Lusignan ou Biron?
Mon front est rouge encor du baiser de la Reine;
J’ai revê dans la Grotte où nage la Syrène...
Et j’ai deux fois vainqueur traversé l’Achéron:
Modulant tour à tour sur la lyre d’Orphée
Les soupirs de la Sainte et les cris de la Fée.
(p. 20)
EL DESDICHADO
Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado,
O Senhor de Aquitânia à Torre da abulia:
Meu único Astro é morto, o meu alaúde iriado
Irradia o Sol negro da Melancolia.
Na noite Sepulcral, Tu que me hás consolado,
O Posílipo e o mar Itálico me envia,
A flor que tanto amava o meu ser desolado,
E a treliça onde a Vinha à Roseira se alia.
Sou Biron, Lusignan?... Febo ou Amor? Na fronte
Ainda o beijo da Rainha rubro me incendeia;
Eu sonhei na Caverna onde nada a Sereia...
E duas vezes cruzei vencedor o Aqueronte:
Modulando na cítara a Orfeu consagrada
Os suspiros da Santa e os arquejos da Fada.
(p. 21)
MYRTHO
Je pense à toi, Myrtho, divine enchanteresse,
Au Pausilippe altier, de mille feux brillant,
A ton front inondé des clartés d’Orient,
Aux raisins noirs mêlés avec l’or de ta tresse.
C’est dans ta coupe aussi que j’avais bu l’ivresse,
Et dans l’éclair furtif de ton oeil souriant,
Quand aux pieds d’Iacchus on me voyait priant,
Car la Muse m’a fait l’un des fils de la Grèce.
Je sais pourquoi là-bas de volcan s’est rouvert…
C’est qu’hier tu l’avais touché d’un pied agile,
Et de cendres soudain l’horizon s’est couvert.
Depuis qu’um duc normand brisa tes dieux d’argile,
Toujours, sous les rameaux du laurier de Virgile,
Le pâle hortensia s’unit au myrte vert!
(p. 22)
MIRTO
Eu penso, Mirto, em ti, mágica divindade,
No Posílipo altivo, em mil fogos ardente,
Em tua fronte que mina os brilhos do Oriente,
Na tua trança entre as uvas na áurea escuridade.
Em tua taça também eu bebi a ebriedade,
E no raio furtivo em teu olhar ridente,
Quando de Iacchus aos pés me viram como crente,
Porque a Musa me fez um Grego de outra idade.
Eu sei por que o vulcão além rugiu desperto...
Foi que o houveste tocado ontem de um pé ligeiro,
E o horizonte de cinzas logo foi coberto.
Se os teus deuses em pó fez um duque estrangeiro,
Sempre, sob a virgílica haste do loureiro,
À branca hortênsia se une o verde mirto aberto!
(p. 23)
HORUS
Le dieu Kneph en tremblant ébranlait l’universe:
Isis, la mére, alors se leva sur sa couche,
Fit un geste de haine à son époux farouche,
Et l’ardeur d’autrefois brilla dans ses yeux verts.
“Le voyez-vous, dit-elle, il meurt, ce vieux pervers,
Tous les frimas du monde ont passé par sa bouche,
Attachez son pied tors, éteignez son oeil louche,
C’este le dieu des volcans et le roi des hivers!”
“L’aigle a déjà passé, l’esprit nouveau m’appelle,
J’ai revêtu pour lui la robe de Cybèle...
C’est l’enfant bien-aimé d’Hermès et d’Osiris!”
La déesse avait fui sur sa conque dorée,
La mer nous renvoyait son image adorée,
Et les cieux rayonnaient sous l’écharpe d’Iris.
(p.24)
HÓRUS
O deus Kneph tremendo abalava o universo:
Ísis, a mãe, então ergueu-se do seu leito,
Fez um gesto de ódio ao esposo contrafeito,
E ao verde olhar surgiu o antigo ardor imerso.
Disse ela: “Ei-lo que morre, este velho perverso,
Toda a geada do mundo em sua boca achou preito,
Amarrai seu pé torto, arriai o olho imperfeito,
Este é o deus dos vulcões e o rei do inverno adverso!
A águia passou, o novo espírito me impele,
Por ele eu me vesti com as roupas de Cibele...
É o bem-amado infante de Hermes e de Osíris!”
Fugira a deusa já em sua concha dourada,
O mar fazia rever sua imagem adorada,
E brilhavam os céus por sob o manto de Ísis.
(p. 25)
ANTEROS
Tu demandes pourquoi j’ai tant de rage au coeur
Et sur um col flexible une tête indomptée;
C’est que je suis issu de la race d’Antée,
Je retourne les dards contre le dieu vainqueur.
Oui, je suis de ceux-là qu’1inspire le Vengeur,
Il m’a marqué le front de sa lèvre irritée,
Sous la pâleur d’Abel, hélas! ensanglantée,
J’ai parfois de Caïn l’implacable rougeur!
Jéhovah! le dernier, vaincu par ton génie,
Qui, du fond des enfers, criait: “O tyrannie!”
C’est mon aïeul Bélus ou mon père Dagon…
Ils m’ont plongé trois fois dans les eaux du Cocyte,
Et, protégeant tout seul ma mère Amalécyte,
Je ressème à ses pieds les dents du vieux dragon.
(p. 26)
ANTEROS
Tu perguntas por que na alma tanto furor
E sobre o frágil ombro uma fronte indomada,
É que a raça de Anteu é a minha árvore herdade,
E eu volto os dardos contra o deus triunfador.
Eu sou um dos que sorvem a alma ao Vingador,
Na testa me pousou sua boca irritada,
Na palidez de Abel, oh! Deus, ensanguentada,
Eu chego a ter de Caim o implacável rubor!
O último, Jeová!, findo por tua magia,
Que lá do fundo inferno uivava: “Oh! Tirania!”
É Belus meu avô ou o meu pai Dagão...
Três vezes do Cocito hauri a água maldita,
E, só, guardando a minha mãe Amalecita,
Eu plantei aos seus pés os dentes do dragão.
(p. 27)
DELFICA
Ultima Cumaei venit Jam carminis aetas.
La connais-tu, Dafné, cette ancienne romance,
Au pied du sycomore, ou sous les lauriers blancs,
Sous l’olivier, le myrte ou les saules tremblants,
Cette chanson d’amour qui toujours recommence?
Reconnais-tu le TEMPLE, au péristyle immense,
Et les citrons amers où s’imprimaient tes dentes?
Et la grotte, fatale aux hôtes imprudents,
Où du dragon vaincu dort l’antique semence?...
Ils reviendront, ces Dieux que tu pleures toujours!
Le temps va ramener l’ordre dess anciens jours;
La terre a tressailli d’un souffle prophétique...
Cependent la sibylle au visage latin
Est endormie encore sous l’arc de Constantin:
- Et rien n’a derangé le sévère Portique.
(p. 28)
DÉLFICA
Ultima Cumaei venit jam carminis aetas.
Tu a conheces, Dafne, esta antiga romança,
Do sicômoro aos pés, sob os louros pendentes,
Sob a oliveira, o mirto e os salgueiros trementes,
Esta canção de amor que além sempre se lança?
Reconheces o TEMPLO onde a cornija avança,
E os amargos limões onde entravam teus dentes?
E a caverna fatal a hóspedes imprudentes
Onde o dragão vencido esconde a íntima herança?...
Eles retornarão, os Deuses que tu choras!
O tempo recriará a ordem das velhas horas;
De um profético sopro o chão foi sacudido...
Enquanto isso a sibila de rosto latino
Ainda dorme por sob o arco de Constantino:
- E nada perturbou o Pórtico esquecido.
(p. 29)
VERS DORÉS
Eh quoi! Tou est sensible!
PYTHAGORE
Homme, libre penseur! te crois-tu seul pensant
Dans ce monde où la vie éclate en toute chose?
Des forces que tu tiens ta liberté dispose,
Mais de tous tes conseils l’univers est absent.
Respecte dans la bête un esprit agissant:
Chaque fleur est une âme à la Nature éclose;
Un mystére d’amour dans de metal repose;
“Tou est sensible!” Et tout sur ton être est puissant.
Crains, dans le mur aveugle, un regard qui t’épie:
A la matière même un verbe est attaché…
Ne la fais pas servir à quelque usage impie!
Souvent dans l’être obscur habite un Dieu caché;
Et, comme un oeil naissant couvert par sés paupières,
Un pur esprit s’accroît sous l’écorce des pierres!
(p. 42)
VERSOS ÁUREOS
Mas como! Tudo é sensível!
PITÁGORAS
Oh! homem pensador, julgas que é em ti somente
Que há a razão neste mundo onde em tudo arfa a vida?
Das forças que tu tens tua vontade é servida,
Mas dos conselhos teus o universo está ausente.
Respeita no animal um espírito agente:
Cada flor é uma alma à Natureza erguida;
Um mistério de amor no metal tem guarida;
“Tudo é sensível!” Tudo em teu ser é potente.
Teme, no muro cego, um olho que te espia:
Pois mesmo na matéria um verbo está sepulto...
Não a faças servir a alguma função ímpia!
No ser obscuro às vezes mora um Deus oculto,
E, como olho a nascer por pálpebras coberto,
Nas pedras cresce um puro espírito disperso!
(p. 43)
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