François Villon





François Villon adotou o sobrenome em homenagem a Guillaume de Villon, que o educou quando o poeta, ainda menino, ficou órfão de pai. A vida do genial autor de Testamento assume um ar de lenda ou roteiro de supreprodução hollywoodiana. Dizem que teve estudos regulares, chegando a frequentar a Universidade de Paris, onde se tornou bacharel e mestre, alegam que matou um padre em briga de rua, por isso teria sido expulso de Paris, comentam que levou um vida devassa, transitando entre tavernas e bordéis, lembram que cultivava amizade de marginais, espalham que era arruaceiro e ladrão. Sabe-se apenas que desapareceu em 1463, depois de ter a sentença de pena de morte por enforcamento revogada. O que aconteceu depois? Pura especulação.
A linguagem desbocada de François Villon modula essa balada gaulesa envenenada por uma dicção satírica provavelmente com endereço certo. A imprecação foi seguramente destinada a esconjurar os diversos inimigos adquiridos numa existência underground avant la lettre. O poema guarda um encantamento rítmico e uma expressiva galeria imagística que o transforma em sessão de feitiçaria.


BALLADE

En realgar, en arcenic rochier,
En orpiment, en salpestre et chaulx vive,
En plomb boullant our mieulx les esmorchier,
En suif et poix destrempez de lessive
Faicte d’estrons et de pissat de juifve,
En lavailles de jambes a meseaulx,
En racleure de piez et viels houseaulx,
En sang d’aspic et drogues venimeuses,
En fiel de loups, de regnars et blereaulx,
Soient frittes ces langues envieuses!

En cervelle de chat qui hayt peschier,
Noir, et si viel qu’il n’ait dent en gencive,
D’ung viel mastin, qui vault bien aussi chier,
Tout enragié, en sa bave et salive,
En l’escume d’une mulle poussive
Detrenchiee menu a bons ciseaulx,
En eaue ou ratz plongent groings et museaulx,
Raines, crappaulx et bestes dangereuses,
Serpens, lesars et telz nobles oyseaulx,
Soient frittes ces langues envieuses!

En sublime, dangereux a touchier,
Et ou nombril d’une couleuvre vive,
En sang qu’on voit es palletes sechier
Sur ces barbiers, quant plaine lune arrive,
Dont l’ung est noir, l’autre plus vert que cive,
En chancre et fiz, et en ces ors cuveaulx
Ou nourrises essangent leurs drappeaulx,
En petiz baings de filles amoureuses
(Qui ne m’entent n’a suivy les bordeaulx)
Soient frittes ces langues envieuses!

Prince, passez tous ces frians morceuals,
S’estamine, sacs n’avez ou bluteaulx,
Parmy le fons d’unes brayes breneuses;
Mais, par avant, en estrons de pourceaulx
Soient frittes ces langues envieuses!


BALADA

Que em realgar, em arsênico testáceo,
Em salitre, cal viva e ouro-pigmento,
Em chumbo que a ferver faça-as pedaços,
Na fuligem e pez do vazamento
De mijo de judia e de excrementos,
Em água onde leprosos são lavados,
Em raspagens de pés e de calçados,
Sangue de cobra e drogas venenosas,
Fel de lobo, raposa e assemelhados,
Se fritem essas línguas invejosas!

Que nos miolos de um gato que a água odeie,
Negro e tão velho que nem tem mais dente,
Ou de um velho mastim da mesma grei,
Raivoso e a se babar constantemente,
No escarro de uma mula enlanguescente
Cortado com tesouras em aparas,
Na água em que ratos metem suas caras,
Bem como sapos, rãs, feras danosas,
Serpentes e lagartos, aves raras,
Se fritem essas línguas invejosas!

Que em sublimado em que é bom nem tocar,
No umbigo de uma cobra viva e nua,
Em sangue como o que se vê secar
Na tina dos barbeiros, onde, à lua,
Ora o negro ora o verde se acentua,
Em cancros e tumores, nas gamelas
Onde se lavam panos de mazelas,
Em água de abluções das amorosas
(Quem nunca viu não sabe quem são elas)
Se fritem essas línguas invejosas!

Príncipe, todos esses bons bocados,
Se não tendes coadores apropriados,
Passai-os por ceroulas bem sebosas;
Antes, porém, em bostas de capados
Se fritem essas línguas invejosas!

In VILLON, François. Testamento. Tradução Afonso Félix de Sousa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p.118-121.

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