Carpe diem







Já não se percebe no topos carpe diem a inspiração epicurista original, Nossa época, de tempo achatado, plano, acelerado, talvez não tenha mais condições de tirar proveito da expressão horaciana, reduzida hoje a um hedonismo míope, de baixo calibre, onde o prazer não é um céu a ser alcançado, mas o próximo minuto descartável. Não obstante, se carpe diem virou grife, nome de danceteria ou de loja, isso não anula as águas que rolaram por um leito tão rico, largando poemas ao longo do tempo.

Gosto da ideia de colher o dia, envolve cuidado, carícia, guarda e abrigo. Colher a vida, a hora, o amor, o que passa, processá-lo nos poros. Aliança entre tempo e vida, existir pode ser apenas a coleta do que plantamos ou do que vem até nós para nos ampliar.

Gosto ainda da astuciosa proposta amorosa, da chantagem sensual de poetas jogando iscas temporais sobre musas. Certo, eles substituíram o verbo colher por outro menos nobre – aproveitar -, mas o amor apaga todas as distinções.

Selecionei oito poemas que giram em torno do carpe diem.



P O E M A S


Mimnermo de Cólofon








* Mimnermo (gr. Μίμνερμος) viveu durante a segunda metade do século VII em Cólofon ou, talvez, em Esmirna, ainda persiste controvérsia. É possível que ele tenha sido contemporâneo de Sólon, e isso é tudo que sabemos a seu respeito. Teve considerável influência em Horácio, Propércio e outros poetas líricos romanos.

Compôs um poema parte mitológico, parte histórico, sobre a fundação de Esmirna, do qual restam pequenos fragmentos, elegias de motivação amorosa, reunidas no livro Nannó (gr. Ναννώ), nome de uma flautista por quem o poeta pretensamente se apaixonou, e elegias melancólicas sobre a vida e a condição humana. Consta que foi o primeiro poeta lírico a utilizar lamentos e temas amorosos de forma sistemática.



Tradução de Antonio Medina Mendonça

Nós, como a tantas flores faz a primavera
Abrir as folhas, nós, quais flores tenras,
Ébrios vamos vivendo efêmero fulgor,
Sem sabermos o mal ou bem que os deuses tramam.
As negras Parcas espionam, entretanto,
Uma em tortura arremata o tempo nosso,
Outra costura a morte, e dura a juventude
O tanto quanto o sol passeia ao solo.
Morrer prefiro, antes que suma a primavera.
Dentro da alma, depois dela, caem os males
E, arrematada a queda, sobra a feita mágoa:
Um vai dentro do Inferno uivar os filhos
Que não teve, outro adoece e morre, qual!
Aos males que nos manda Zeus ninguém escapa!

(MARTINS, Paulo (org.). Antologia de poetas gregos e latinos (monódica e coral, jâmbica, polímtera e elegíaca). 3ª ed. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanadas da Universidade de São Paulo, 2010.)

 ***

























Horácio

Ode I.II    

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint. Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros, ut melius, quidquid erit, pati,
seu pluris hiemes seu tribuit luppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi
spem longam reseces, dum loquimur, fugerit ínvida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.

*

Tradução de Augusto de Campos


não me perguntes
                                - é vedado saber -
o fim
que a mim
e a ti
                               darão os deuses
                                                           Leucônoe
                               nem babilônios
números consultes             
              antes
                               o que for           recebe
quer te atribua Júpiter muitos invernos
quer o último
                        que o mar tirreno debilita com abruptas
r
o
c
h
a
s
bebe o vinho            
          sabe a vida                       e corta
a longa esperança
                                    enquanto falamos
                                                                        foge
                                                                                  invejoso
o tempo:           

                 curte o dia
                                       desamando amanhãs

***

Góngora

Soneto

Mientras por competir con tu cabello,
oro bruñido al sol relumbra en vano,
mientras con menosprecio en medio el llano
mira tu blanca frente al lilio bello;

mientras a cada labio, por cogello,
siguen más ojos que al clavel temprano,
y mientras triunfa con desdén lozano
del luciente cristal tu gentil cuello;

goza cuello, cabello, labio y frente,
antes que lo que fué en tu edad dorada
oro, lilio, clavel, cristal luciente,

no sólo en plata o viola troncada
se vuelva, mas tú y ello juntamente
en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada.

(GONGORA Y ARGOTE, Luis de. Poemas de Góngora. Tradução, introdução e notas de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Art Editora, 1988.)

***

Gregório de Matos

A Maria dos Povos, sua futura esposa

Soneto

Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trata a toda ligeireza,
E3 imprime em toda a flor sua pisada.

Oh  não aguardes, que a madura idade,
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

(MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. Seleção, introdução e notas de José Miguel Wisnik. São Paulo: Cultrix, 1976.)


***

Tomás Antônio Gonzaga

Lira XIV

Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça
          Estão os mesmos Deuses
Sujeitos ao poder do ímpio Fado:
Apolo já fugiu do Céu brilhante,
          Já foi Pastor de gado.

A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem, que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte:
          Qual fica no Sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Que no campo e lhe arranca os frios ossos
          Ferro do torno arado.

Ah! enquanto os Destinos impiedosos
Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim, façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
          Um coração, que, frouxo,
A grata posse de seu bem difere
A si, Marília, a si próprio rouba,
          A si próprio fere.

Ornemos nossas testas com as flores
E façamos de feno um brando leito
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
          Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo, que passa,
          Também, Marília, morre.

Com os anos, Marília, o gosto falta,
E se entorpece o corpo já cansado;
Triste, o velho cordeiro está deitado,
E o leve filho sempre alegre salta.
          A mesma formosura
É dote, que só goza a mocidade:
Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
          Mal chega a longa idade.

Que havemos d’esperar, Marília bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
          Ah! não, minha Marília,
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças,
          E ao semblante a graça.

(GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. São Paulo: Martins; Brasília, INL, 1972.)

 ***




Fernando Pessoa

Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir por o que está perto –
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia,, porque és ele.


(PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa: obra poética. 9ª. ed. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 1984.)


*** 

Mário Faustino
Carpe diem
Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?

Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim

Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar – tão nobre.
Já nele a luz da lua – a morte – mora.
De traição foi feito: vai-se embora.)

(Fautino, Mário. Os melhores poemas. 2ª. Ed. São Paulo: Global, 1988.)

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Paulo Henriques Brito


Horácio no Baixo

(Odes I, 11)


Tentar prever o que o futuro te reserva
não leva a nada. Mãe de santo, mapa astral
e livro de autoajuda é tudo a mesma merda.
O melhor é aceitar o que de bom ou mau
acontecer. O verão que agora inicia
pode ser só mais um, ou pode ser o último -
vá saber. Toma o teu chope, aproveita o dia,
e quanto ao amanhã, o que vier é lucro.
(BRITTO, Paulo Henriques. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.)



Comentários

  1. Faz quase dez anos da publicação e só agora encontrei esta página. Gostei. Mas nunca é tarde para uma pequena correção: o nome do professor tradutor de Mimnermo de Cólofon é ANTÔNIO MEDINA RODRIGUES (e não, Mendonça), saudoso amigo.


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