Dora Ribeiro




Nascida em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em 1960. Escreve poemas desde o início da adolescência. Estudou nos Estados Unidos, de onde voltou para cursar Letras na PUC-Rio. Também viveu em Portugal e na China. Estreou com o livro Ladrilho de palavras - coedição com Lélia Rita Figueiredo Ribeiro (1984), depois publicou Começar e o fim (Fundação Catarinense de Cultura, 1990), Bicho do Mato (7 letras, 2000), Taquara rachada (7 letas, 2002), O poeta não existe (Angelus Novus, Cotovia, Portugal, 2005), Teoria do Jardim (Companhia das Letras, 2009) e Olho empírico (2011). Viveu em Lisboa entre 1983 e 2006 e morou em Pequim.


POEMAS






Meu cinema 

o plano está bastante
inclinado
e nós estamos lá
simples e
molhados

(há ovelhas à volta
e as árvores são
esculturas feitas de
ventania)


o chão

olha debaixo
da minha saia

e você vê ali
o céu descoberto

eu finjo distração
e morro por segundos
nos seus braços


***

o meu rosto e o teu cinema
são matéria do mesmo
manifesto
da mesma hora precária

carregam dúvidas
e escrevem com
os mesmos sinais a
paisagem do erro

***

quero falar uma língua nova
principiada na carta do teu
corpo
sem escrita lúcida nem
modos genitivos
quero uma língua
já gasta
gentilizada
versada em todos os
paganismos sórdidos e
elegantes
imagino-a já enciclopédica
ruminante e
devoradora de esperas
língua sem contenção
musa de labirintos

***




beijing

toda destruição
deixa alguma espécie de marca
caras queimadas
braços vazios
fios elétricos pendurados no ar

reescrever não tem lastro silencioso
todos os paus do corpo
gritam
pedem justiça para a sua pele
nada mais teatral do que a morte
disse ashbery
mesmo a morte do acabado

o reescritor porém ignora
a propagação do desejo
de destruir não destruir
e convencido da história
constrói não constrói
***
difícil olhar o tempo
sem repetir a vista
ou esquecer o modo das
vezes

ouvi o desaviso sem
luz e pensei nos líquidos
sorvidos desde a infância
 Poemas escritos na China 157
nada mais substancioso

leite de tudo
olhos quietos de sugar apenas
vida sempre aberta para
o escuro

***

parca serenidade II

a infância é o nosso mais fiel e longo animal
***
o poeta não existe

fora a vulgaridade se amontoa em histórias originais

***

o poeta não existe

coisa do nada
inimigo dos vizinhos
e de todos os desejos com nome

ele sabe que inexiste
por isso frequenta a poesia






















Texto crítico


Resenha de Flora Süssekind sobre a obra inicial de Dora Ribeiro, publicada no Caderno Ideias, Jornal do Brasil, em 13/03/1999.

O dentro, o fora 

Flora Süssekind

Os dois livros de Dora Ribeiro, Ladrilho de Palavras (1986) e Começar e o fim (1990), como muitos outros de poetas que lançaram suas primeiras coletâneas na segunda metade dos anos 80, passaram, do ponto de vista da recepção crítica imediata (com a exceção, neste caso, de um comentário de Luiz Costa Lima), praticamente em branco. Como se fosse impossível, independente da qualidade, sua visualização fora de algum movimento mais global ou tendência geracional definida. E, se invisíveis no contexto da publicação, paradoxalmente, um dos seus aspectos mais curiosos, para uma leitura atual, talvez esteja, ao contrário, na sua capacidade de exposição das tensões entre modelos imaginativos distintos como os das duas décadas que os delimitam. Entre a auto-expressividade, o prosaísmo e a poesia-diário, dominantes na poética dos anos 70, e o redimensionamento do sujeito lírico, a autorreflexão e a investigação formal e material, que caracterizariam parcela significativa da poesia de fins da década de 80 e dos anos 90 no Brasil.
 Pois há como que dois rastros perceptíveis na sucessão de poemas breves, quase todos sem título ou sinais gráficos particulares (apenas alguns poucos dois pontos, aspas e parênteses), fora a extensão variável dos brancos intervalares, que compõem esses livros de Dora Ribeiro. Um desses rastros parece seguir, em parte, o gosto pelo banal (não sua estetização), pelos diários (vide Chico Alvim ou Ana Cristina César), pelos dias em que nada acontece ("um dia como quem precisa achar emprego/ mas acaba bebendo e jogando sinuca", como no texto de Eudoro Augusto) da poesia das décadas de 70 e início de 80. Retomada que, nos poemas de Dora, se daria via exposição miúda do cotidiano ("doce de leite na colher", "almoço comercial", "descasquei batatas", "verdura arroz", "o calo do pé"), por vezes também próxima da notação de diário ("dia santo prosaico/dia sem santo", "como se reconhece o dia/em março/de horas e horas contadas/no ano", "os dias mesmos", a "vida de calendário"), da lista pura e simples ("batata palha/molho diana/sem café"), da "obsessão de enumerar a presença vital e intransponível das coisas". Ou, ainda, via percepção do tempo como uma forma de espera ("neste estar continuado de esperar"), de tempo "mole", modorrento, empoçado, morto: "o tempo se amontoa galinha/ no poleiro/ agrupamento malcheiroso/ porcos/ pardieiro/ toca fétida/ dos dias". 
Não faltam mesmo, nesse seu diálogo com a produção poética do período imediatamente anterior ao seu, uma tentativa acanhada de poema-minuto -"de olho rasteiro volto para casa/ preciso saber se já tive pneumonia", assim como certas hipertrofias do eu, - maneira da que se dá num poema-descrição de beijo em Ladrilho de Palavras: "faço de conta de cansaço/ amarro as franjas/ cintilo os braços/ escureço os olhos/ e/ despenco". Exemplos de quase endosso não muito frequentes, no entanto, na poesia de Dora. Já que, aí, este esquema expressivo parece tensionar-se duplamente. Em primeiro lugar, por uma tomada de distância -"e a primeira pessoa, outra"- com relação aos muitos eus de seus poemas, o que resultaria, por vezes, em construções propositadamente indeterminadas, estruturadas por uma série de infinitivos verbais substantivados ("começar", "o estalar da beleza") ou tendo substantivos abstratos como sujeitos textuais ("a perfeição", "a teoria", "uma ideia"), por vezes, numa diferenciação explícita entre sujeito empírico e figuração autoral -"o poeta não existe/ coisa do nada/ inimigo dos vizinhos/ e de todos os desejos com nome"-; na afirmação da consciência de que o sujeito é sujeito do poema: "ele sabe que inexiste/ por isso frequenta a poesia". 
E, outro ponto de instabilização da poética expressiva: uma espécie de trava ao presente, ao imediato, mesmo glosando-se, por vezes, a passagem dos dias, "desta hora", as formas de medida e registro do instante. Dora Ribeiro parece mesmo trabalhar, com frequência, com um tipo de paradoxo temporal - os verbos do poema no presente, mas acompanhados de uma forma condicional no futuro ou de uma localização explícita no passado. Ou, como se lê no poema que dá título ao seu primeiro livro: "dois tempos a desfiar/ suas tranças/no rosto estendido/de roupa no varal/púbico". O que resultaria, na série "Temporale", incluída na revista Inimigo rumor n.6 , nas variações em torno de um "quero te ver", ao qual se acrescentam ora condições futuras ("quando a terra molhada/cobrir teu abismo"), ora um movimento retrospectivo imediato ("quero te ver dopo il temporale/no passado/ onde o abismo vive num poço/sem vertigens/e/ limita-se ao descanso profundo/e às ideias de águas paradas").
 Há, portanto, um segundo rastro nesses dois livros, no qual a figuração do sujeito lírico, assim como a "hipótese da poesia" se afiguram problemáticos. O poema apontando não para o registro do mundo ou para a identificação da paisagem sensorial, mas para a consciência de seus limites (dá a intensificação, por vezes via Cabral e Celan, das imagens da pedra e do deserto, além dos seus muitos "temporais"), de uma intransponibilidade constitutiva ("paisagem que não alcanço", "a distância maior entre a sala e o quarto", "teus silêncios"). Ou, como no belo "temporale iv": "silêncio é palavra madura/difícil/sei de um poeta/que a usou sem saber/e/morreu". 
O poema apontando, por outro lado, não para o reforço de uma autoconstituição da subjetividade, mas para figurações diversas, e aparentemente estranhas na ambiência "lírica" dos textos de Dora, de decomposição, instabilização, dissolução de uma paisagem corporal, de presença no entanto fortíssima nos seus dois livros. Pois é nítida, nesse sentido, a multiplicação de pedaços do corpo (olho, braços, pernas, joelhos, boca, costas, mão) ou de formas variadas de contato corporal (roçar, beijo, tatuar, massagear, coçar), percursos vários de "mão exígua/ sobre o corpo", como fontes imagéticas dos poemas. Chega-se mesmo a figurar o poema como um "catalogar os sentidos", como "andanças da pele". E a falar em "dedo palavra", "corpo imaginação". Parecendo, por vezes, produzir-se uma espécie de identificação, de visualização, corporal para o sujeito e o poema. Movimento que se faria acompanhar, de modo quase imediato, entretanto, pelo seu avesso, por um "prazer do decomposto", pelo tremor, por um despencar, por uma "medida de sombra", um "corpo disforme", desdobrado em pregas, partes, ruídos, cansaço, dissociação, ou por um súbito "sumiço". Sumiço no qual se inclui, de certa maneira, até mesmo o poema, convertido em "desejo sempre outro", "desejo involuntário" da poesia, e, como tal, indício bem mais de falta, ausência, do que de corporalidade imediata.
 E é exatamente na transformação desses movimentos contraditórios - a intensa corporalidade do seu sujeito lírico ao lado de uma tendência decompositória equivalente em aspecto fundamental de sua prática poética que se singulariza o diálogo empreendido por Dora Ribeiro com os modelos - expressivo e reflexivo - de imaginação literária dominantes no seu período de formação. E que, desviando-se, por meio desse desdobramento antagônico, de certa dicção sublime que imprime a algumas de suas abstratizações poéticas, constrói alguns dos melhores textos desses dois livros. E de um período que, entre "booms poéticos de mídia", costuma ficar ao largo de qualquer consideração crítica.



Comentários