Gastão Cruz
Ao
que eu saiba, do poeta português Gastão Cruz (1941) só um único livro foi publicado no
Brasil: A
moeda do tempo e outros poemas, antologia organizada por Jorge
Fernandes da Silveira, professor de literatura portuguesa da UFRJ, para a
Editora Língua Geral, em 2009, da qual colhi os poemas utilizados na pequena mostra. Pouco, muito
pouco para um poeta com tantos leitores por aqui.
Lucio Fontana |
Paráfrase
Deito um peixe no
eixo do meu peito
aí o deixo devorar
primeiro a vida
os coágulos depois o
osso enfim
os arcos das costelas
o esterno
já ferido pelos dias
É ele o meu pulmão o
músculo do meu
sangue perdido
barbatanas escamas
guelras eixo
peixe
deitado no meu peito
e vivo
entre ruínas
(In Teoria da fala, 1972)
Transe
Num tempo neutro
acordo
entre a noite e o dia
sob um céu ilegítimo
condensa-se
a mudança
Nuvens totais
exprimem
a presente longínqua
madrugada
as aves sobrevivem na
queda
ao
tempo branco
Acordo sob um céu sob
o tecto
dum quarto
É uma imagem pobre
uma velha
metáfora No exterior
porém
das paredes toalhas
além
dos vidros turvos de
nuvens
apagadas
agride-me a imagem
invisível
opaca
da madrugada externa
que
no dia se espalha
como uma norma
espessa
uma neutra linguagem
O céu é como um poço
como um mar
como um lago
comparações banais
mas as mais
eficazes onde aves
como peixes
transitam lentamente
errando
nas palavras
Procuro adormecer
O silêncio do
dia inutiliza a vida
Provavelmente nada
mudará ou talvez
tudo tenha mudado há
muito
ou vá mudando
sob o lago do céu
onde os
peixes descrevem
ilegítimos voos como
velhas
metáforas
(In Órgão de luzes, 1981)
Rios
Se te enganam as ruas
de Lisboa
como tropos dum
estilo conhecido
hipérboles desfeitas
áridas metonímias
nos rios do verão
metáforas ainda
procura do metal do
corpo o velho mito
Talvez olhando em
torno
não vejas os indícios
da água que desfaz
devagar estas vias
talvez ela não corra
nos seus leitos
fictícios
Desse espelho molhado
colhe o brilho
como as folhas de
julho alheio à
velocidade da vida
(In Referentes, 1983)
Lucio Fontana |
O
pianista
Senta-se imita
o autor Os
holofotes douram-no
é a vítima
dos expansivos
círculos do som
Em torno dele o som é
como
um laço
Está sentado na
margem do
teclado detendo com
os braços
a força ameaçadora
das águas
(In O pianista, 1984)
Os
sonhos são a minha biografia
Cf. Mallarmé e Rilke
Na luz tépida passa,
bibelot abolido,
das inanes palavras o
sentido
A confusão dos
sonhos, só,
é o destino
crepuscular desses
perfis, o seu exílio
O som dos sonhos,
inaudível, guia
no seu destino as
palavras que fogem
A poesia aproxima-as
do coração da vida
que as destrói com a
sua existência mais forte
(In As pedras negras, 1995)
Erros
Não sei se má fortuna
erros decerto
erros somente? Pode o
amor ardente,
algum tempo omitido,
descoberto
cobrir de novo a pele
neste presente,
que de pouco já serve
a sua chama
lugar comum tão pobre
e tão verídico
que sopras e apagas
como a cama
negas ao corpo Foge o
tempo mítico
em que tudo era
eterno e só durou
o espaço da manhã do
teu sorriso
como a rosa que tarde
já chegou
e pousou devagar no
corpo liso
e frio não de morte
ou de indiferença
frio só porque tudo
tem um tempo
até as rosas e não há
presença
nem chama do amor que
o torne eterno
(In Crateras, 2000)
Lucio Fontana |
Metal
fundente
Gostava de
explicar-te e de poder
eu próprio
compreender
por que momentos
houve em que perder-te
era metal fundente
como o que disse um poeta
Entre nós e as
palavras existir
Eu seria as palavras
tu os corpos
fundentes de nós
dois, pela separação
futura liquefeitos
Era de cada vez como
se a vida
também fundisse e o
seu metal escorresse
sobre a pele da perda
talvez isso
explicasse como o
chumbo
da ilusão derrete e
nos libert
até desse momento em
que tememos
nada mais ter
Mas como poderia
eu amar-te e achar-te
já de mais
sentir estando tu tão
perto ainda
a onda
da ausência
contornar-me
O céu em certos dias produzia
o efeito dum espelho
em que voltávamos
invernos
ao verão que tu
julgaras
então igual à vida e
era apenas
a infância perdida
sobre o mar
(In Rua de Portugal, 2002)
A
colher
Reabro uma
gaveta da infância
e encontro a colher
em desuso caída
a sopa lentamente se
escoando
no prato fundo:
a vida
em certos dias tinha
a forma
daquele objecto
antigo
tocando-me nos
lábios com um calor
excessivo.
(In Repercussão, 2004)
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