Ana Martins Marques


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Língua

1

no princípio
toda língua é estrangeira

acerca-se do seu corpo como de uma cidade
até tomá-lo
fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes
que lhe dá
pé perna barriga dentes
fazer a língua chamar-se língua
chamar-se a si mesma pelo nome dela
língua
acerca-se até domá-la
para ensinar-lhe uma coreografia sua
que ela, língua, por sua vez
ensina ao pensamento
cantando

estar na língua como numa
casa louca
que obriga ao abrigar

ela pensa o seu sexo
ela pensa o seu coração
abrindo-o

ela é música
e combate

ela fala na sua boca
com a boca dos mortos

ela é a eletricidade
dos cadáveres

daqueles cuja boca ela encheu
antes da terra

ela cria raízes no seu corpo
dela não é possível se livrar

você é livro
dela

e se aprende outra
é contra ela
contra sua memória
excessiva
e em viagem
com ela
que te cobra e cobre
como um mar

2

Ou é um dueto
uma dança
muito antiga

dela você também se acerca
toma as palavras emprestadas
e empresta-lhes também
sua energia
sua coragem ou doçura

e talvez seja mesmo possível
descartá-la
dissolver-se num mar que não o seu (Cf. Jorge de Sena, “Noções de linguística”)
livrar-se dela
trocá-la por outra
mais nova ou versátil

(meus únicos heróis
são os tradutores)

ou pouco importa a língua
mas o dizer as coisas
que ao serem ditas
extinguem-se
mas com que fulgor

(escrever poemas:
não se contentar com as línguas que se sabe
nem mesmo com as línguas que há)

as línguas são meios
de viagem, são meios
de transporte as palavras:
carrega consigo o camelo o arranha-céu
a baleia
não só a baleia
todas as baleias
não só o amor
todo o amor


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