Lawrence Ferlinghetti










Poema de Lawrence Ferlinghetti traduzido por Natália Agra e Fabiano Calixto.

 

Utilidades da poesia

 

Então, para que serve a poesia nesses nossos dias?

Qual seu uso? Qual sua utilidade?

Nesses dias e noites da Era do Capocalipse

em que a poesia é o asfalto

das estradas dos exércitos noturnos

como naquele paraíso de palmeiras no norte da Nicarágua

onde promessas são feitas nas plazas

e desfeitas nas quebradas

ou nos campos verdíssimos

da Estação de Armas Navais de Concord

onde trens blindados esmagam manifestantes verdes

onde a poesia se faz importante pela ausência

ausência de pássaros na paisagem de verão

ausência de amor nas coxas da meia-noite

ausência de luz ao meio-dia

na Casa (não tão) Branca

Pois mesmo a poesia ruim é importante

por aquilo que não diz

por aquilo que abandona

Que dizer do sol escorrendo

pela pele da manhã

das noites brancas e das bocas sedentas

lábios ululando Lulu sem parar

e dos seres alados que cantam

e dos gritos distantes numa praia ao anoitecer

e da luz jamais vista em terra ou mar

e das cavernas descobertas pelo homem

onde corriam rios sagrados

junto às cidades costeiras

onde caminhamos distraídos

intensamente comovidos

com o louco espetáculo da existência

todos esses animais tagarelas sobre rodas

heróis e heroínas com mil olhos

com corações corajosos e superalmas ocultas

nem aí para mitos

(Por uma vida sem mitos!

gritou Joseph Campbell

e se mandou de barco para o Havaí)

sempre impressionados por eu insistir

com esses aprumados bípedes de cara lisa

esses atores frementes

pálidos ídolos nas ruas noturnas

dançarinos extáticos no pó da Last Waltz

nesse tempo de engarrafamentos da Era do Capocalipse

onde a voz do poeta soa distante

a voz da Quarta Pessoa do Singular

a voz dentro da voz da tartaruga

a face atrás da face da raça

letras de luz na página da noite

a ávida voz da vida como a escutara Whitman

um leve riso selvagem

(quiçá a libertemos

do editor de texto da mente!)

E eu sou o repórter diário

de outro planeta

redigindo a história decadente

do Que Quando Onde Como e Por quê

dessa espantosa vida aqui

e dos estranhos palhaços que governam

com os cotovelos no parapeito

das demoníacas aterrorizantes fábricas

lançando suas sombras entrevadas

na grande sombra da Terra

no fim do tempo não visto

no supremo haxixe do nosso sonho

 

* * *

Texto original

 

Uses of poetry



So what is the use of poetry these days
What use is it What good is it
these days and nights in the Age of Autogeddon
in which poetry is what has been paved over
to make a freeway for armies of the night
as in that palm paradiso just north of Nicaragua
where promises made in the plazas
will be betrayed in the back country
or in the so-green fields
of the Concord Naval Weapons Station
Where armed trains run over green protesters
where poetry is made important by its absence
the absence of birds in a summer landscape
the lack of love in a bed at midnight
the lack of light at High Noon
in the no-so-White House
For even bad poetry has relevance
for what it does not say
for what it leaves out
Yes what of the sun streaming down
in the meshes of morning
what of white nights and mouths of desire
lips saying Lulu over and over
and all things born with wings that sing
and far far cries upon a beach at nightfall
and light that never was on land and sea
and caverns measured-out by man
where once the sacred rivers ran
near cities by the sea
through which we walk and wander absently
astounded constantly
and by the mad spectacle of existence
all these talking animals on wheels
heroes and heroines with a thousand eyes
with bents hearts and hidden oversouls
with no more myths to call their own
(No more myths to live by!
cried Joseph Campbell
and went hull-down in Hawaii)
constantly astounded as I am still
by these bare-face bipeds in clothes
these stand-up tragedians
pale idols in the night streets
trance-dancers in the dust of Last Waltz
in this time of gridlock Autogeddon
where the voice of the poet still sounds distantly
the voice of the Fourth Person Singular
the voice within the voice of the turtle
the face behind the face of the race
a book of light at night
the very voice of life as Whitman heard it
a wild soft laughter
(ah but to free it still
from the word-processor of the mind!)
And I am a reporter for a newspaper
on another planet
come to file a down-to-earth story
of the What When Where How and Why
of this astounding life down here
and of the strange clowns in control of it
with hands upon the windowssills
of dread demonic mills
casting their own dark shadows
into the earth’s great shadow
in the end of time unseen
in the supreme hashish of our dream

 

Nota: “Utilidades da poesia” faz parte de These are my rivers (1993).

 

Fonte: Publicado no 2º número do volume 3 da Revista Rosa em 26/4/2021.

Revista Rosa, S.Paulo/SP, Brasil, https://revistarosa.comissn 2764-1333.

 

  

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