CARLITO AZEVEDO

















CARLITO AZEVEDO

Tempos UERJ, reconstrução do movimento estudantil, anistia, esperança, redemocratização, poetas a distribuir folhetos, revistas literárias pelo Brasil afora, imprensa nanica, dispoção política, energia coletiva, pop. ref. versus pop. rev., militantes de extintas oo. reorganizando rumos, espécie de tempo a anteceder grandes transformações. Sem nostalgia, sem saudade, a arte não possui ontem, a poesia é manhã e agora. Por isso estou aqui, no hall da Letras-Uerj, há alguns anos atrás e nesse instante, ao lado de um amigo. Vemos/vimos as passantes baudelairianas desfilando pecados e insensatez, enquanto devoramos poemas.

Não me surpreende vê-lo no tateio e no domínio da linguagem, o começo e a maturidade são o mesmo impulso, e já naquele-este-tempo eu pude observar o que é um poeta de verdade rompendo a crosta gordurosa da comunicação, essa rotina que é a linguagem transformada em esclerose ou troca de previsibilidade entre zumbis lingüísticos.


ABERTURA


Desta janela

domou-se o infinito à esquadria;

desde além, aonde a púrpura sobre a serra

assoma como fumaça desatando-se da lenha,

até aqui, nesta flor quieta sobre o

parapeito em cujas bordas se lêem

as primeiras deserções da

geometria.

(In: As banhistas. Rio de Janeiro: Imago, p.13.)


NA NOITE FÍSICA


(desentranhado de um poema de Charles Peixoto)


A luz do quarto apagada,

na escuridão se destaca

a insônia que nos atraca,

dois gêmeos na bolsa d'água.

Ao despertar levo as marcas

que de noite rabiscavas

em minha pele com a sarna

ávida de tua raiva?

E em você a cega trama

algum mal pôde? ou maltrata

ainda, que penetrava

concha, espádua, gargalhada?

E, em nosso rosto essa raiva

aberta? que estranha lava

é essa que, rubra (baba

de algum diabo), se espalha?

A luz do quarto apagada,

na escuridão se destaca

a fúria que nos atraca,

dois gêmeos na bolsa d'água.


(In: Sob a noite física.)











As banhistas, Cézanne


BANHISTA


Apenas

em frente

ao mar

um dia de verão -

quando tua voz

acesa percorresse,

consumindo-o,

o pavio de um verso

até sua última

sílaba inflamável -

quando o súbito

atrito de um nome

em tua memória te

incendiasse os cabelos -

(e sobre tua pele

de fogo a

brisa fizesse

rasgaduras

de água)


[In: As banhistas. Rio de Janeiro: Imago, p. 53.)


SOB O DUPLO INCÊNDIO


Sob o duplo incêndio

da lua e do neon,

sobre um parapeito de

mármore, entre duas cortinas

jogadas pela brisa marinha

que ao mesmo tempo às suas

coxas e costas dispensava

um hálito incontínuo,

inundando de rubro o restrito

perímetro de seu jarro em cerâmica

e contrastando imemorial com a

transitoriedade de tudo ali

hotel, amor, dia, noite, carros,

uma flor alheia a símbolos

atingia seu ponto máximo

de beleza.


(In: Collapsus linguae. Rio de Janeiro: Lynx, 1991, p. 54)



DRUMMOND


Sabe que nada mais agora
poderá mover sua poesia.

Cruza a avenida Rio Branco, o aterro,
a enseada, o túnel do Pasmado

(do mundo caduco, é a parte
que mais lhe agrada).

Nem o vestido de flores da
filha do tipógrafo, nem os

pássaros de fogo que dele
partiam de vez em quando

(tudo perdido num antigo
crepúsculo itabirano).

Nem aquela vez,
quando pensou ouvir

o rumor do mundo percutindo
as paredes do Outeiro

(havia um melro no alto
do muro de cantaria negra).

Cerra as mãos como quem porta
um segredo, e ainda que ninguém

perceba, sente que sua revolução
está ocorrendo neste exato instante.

Se apenas uma dessas indecifráveis
palmeiras pousasse o rosto no peito

do aviador cansado, ouviria
as bombas da ilusão de

auto-suficiência e as bombas
da ilusão de unidade absoluta

com a natureza reduzindo a
pó a ilha mínima do eu.

Mas ele mesmo só pode ouvir os
ônibus lotados que passam rumo à

periferia, soltando no ar
grossos rolos de fumaça negra,

ou as mãos de quem costura
vestidos de flores baratos.

Revoluções e filhos são mais
incontroláveis do que poéticos:

eis a quinta-essência do
aprendizado? Maria Julieta está morta.

Cruza o túnel do Pasmado, e mais outro.
Tudo somado, talvez esteja recitando:

"A Avenida Atlântica situa essas
coisas numa palidez de galáxias".


(Do livro inédito: Margens)

Comentários

  1. Gosto muito da escrita do Carlito. Também da sua figura como orientador/professor na oficina literária na UERJ. Sempre leve, sempre sensível e engraçado!

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  2. Olá. Por aqui, algum poema do Carlito que eu não conhecia. Ele é demais, né?
    Impressionante!
    Só fico imaginando o que não sera o novo livro dele !
    bjs nora

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