NATÁLIA CORREIA

NATÁLIA CORREIA (São Miguel, Açores, 1923 − Lisboa, 1993)


Foi estudar em Lisboa ainda criança e cedo iniciou a sua actividade literária. Poetisa, ficcionista, ensaísta, tradutora, dividiu a sua criatividade pelo teatro e pela investigação literária.Empenhada politicamente, viu vários dos seus livros serem apreendidos pela censura, chegando a ser condenada a três anos de prisão com pena suspensa, acusada de abuso de liberdade de imprensa.
A sua vasta obra poética encontra-se reunida em Poesia Completa: O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, 1993. Natália Correia é ainda autora de obras como A Ilha de Circe (ficção), 1983; Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (teatro), 1981; Uma Estátua para Herodes (ensaio), 1974.


QUE MARGENS TÊM OS RIOS

Que margens têm os rios
para além das suas margens?
que viagens são navios?
que navios são viagens?

Que contrário é uma estrela?
Que estrela é este contrário
de imaginarmos por vê-la
tudo à volta imaginário?

(In: A poesia portuguesa hoje, org. Gastão Cruz)


























A RECUSA DAS IMAGENS EVIDENTES (IV)

Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete braços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exatidão da rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astro que se olham de perfil.

(In: Dimensão Encontrada)


2° PASSEIO NOS JARDINS DE ADÔNIS

Recusa, amigo, da lide o ardil que, fátuo,
Nenhum deus quer ou lembra;
E entremos no jardim como quem no sagrado
De que se ignora entra.

Na fonte, ao tempo alheio, voz de água estremecida,
Gorgoleja o delfim
A ária que reúne o pouco da vida
No esplendor do jardim.

Aos fados que nos fiam o estreito acontecer,
Só na ilusão ilesos,
Sob as tílias amemos: é o estreito dever
De agradarmos aos deuses.

Flores não colhas, porém: sem nexo, se colhidas,
Vão morrer-te nos braços.
Deixa-as serem na haste o hálito da vida
Que te perfuma os passos.

Leves, instantâneas rosas indiferentes às máscaras
Que apodrecem leprosas,
Concedem-nos os deuses para que as nossas almas
Não pesem mais que as rosas.

Num lapso da verdade de que és pálido súbdito
Por decretos ignotos,
O jardim é o instante em que olhamos o mundo
Com magnólias nos olhos.

(In: Jornal de Letras, junho/84, Lisboa)


ESTE DEMAIS RANCOR AMOR DE MENOS

Este demais rancor amor de menos
esta fétida véspera de extermínios
este cínicos cristos estes cênicos
doces venham a mim os pequeninos.

esta mesma porção de outros venenos
esta apenas mudança de domínios
estes canhotos credos obscenos
este avante deveras só nos hinos

este cio de pústula este assunto
de piranhas de pântano este muito
traseiro à mostra de uma raça pouca
esta queimada flor que um anjo vesgo
com pétalas de Abril escreveu a esmo
no fogo-fátuo de uma data torta.

(In: Epístola aos Iamitas, 1976)











Camille Claudel


SONETO

De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

(In: http://www.lumiarte.com/)

OBS.: Os quatro primeiros poemas foram extraídos da excelente antologia organizada por Maria de Lourdes Hortas, Poetas portugueses contemporâneos. Recife: Edições Pirata, 1985.

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