RICARDO PINTO DE SOUZA

Ricardo Pinto de Souza nasceu no Rio de Janeiro, em 1978. É editor da Oficina Raquel ( http://www.oficinaraquel.com/ ), e publicou Culturas (2007,poemas, versão eletrônica em http://www.oficinaraquel.com/catalogo.html#ebooks ) e Bestiário (2008, pequenas narrativas) pela editora. Também é doutorando em Literatura Comparada pela UFRJ, pesquisando sobre espírito trágico e identidade nacional. Atualmente termina sua tese e prepara mais um livro.

POEMAS

























Maria Cheung


SOBRE FRANZ

o que não pode, na pepita dos ossos roídos
ser roído: o que permanece, que alimenta
o ruído do ruído, o que constrói o homem
e seus anjos e demônios e fantasmas
seus esgotos
seus teares






















Respiro I, Deisi Marin



ARANCIONE

Ninguém precisa mais
que uma laranja rodada
para suprimir a queda das coisas
mas enquanto não temos laranjas
artes menores
de muros e de tocas
sinistras e escondidas mãos
para roubar laranjas antes de rodá-las
e antes de rodá-las
seduzi-las, “à voz”
e antes de roubá-las
tatear o negro e o som
não pelas laranjas, estas putas
ou qualquer outro cítrico fluorescente
mas para encostar
e roçar e relar e
apertar laranjas enterradas
é melhor que ver laranjas na distância

não me diga
“brilho estelar que faz os olhos
e permite lágrimas sinceras e remidas”
não é hora de piedade, ainda não
ainda que você saiba muito bem que
ao contrário do que eu disse, laranjas não são putas
mas não é tempo de piedade
que as laranjas também dão suco
e quando roubadas não guardam seu tesouro:
molham encharcam
— um ácido doce, cheiroso mel, afinal
não é isto que pode nos tornar barro
fogo e laranjas, estas coisas carnosas e explosivas?

























Couple Zoomorphe, Max Ernst



BOI

(TATUAGEM)

um boi
Lento e forte, um boi
remordendo, regurgitando
Põe seu rosto em minhas mãos
Caçando sal:
Rir de um boi pastando
Um boi não ri
Um boi não ama
Um boi não diz
Um boi não salva
Um boi não peca
Um boi não acha, um boi não perde
Um boi não possui
Um boi não quer
Um boi não tem razão
Para ódio ou preferência
Ignora ócio e trabalho
Um boi não
Boi

Um boi rumina
E rumina de novo
E mais uma vez
ru-mi-na
anim,ur
rumen
primeiro estômago
primeiro úbere
mina prima
primeira sombra mesma
fica (re-tor-na) vai
permanência, reminiscência
seivas e fluidos e sumos
rumo
mama
ar:
Um deus-boi
Olhos bovinos
Criaturas de um deus-boi
Primo boi
Peso e lento
A figura do deus sem conflagração

(MÚSCULO)

primo boi
Não existe socorro
Da canga e do carro
O dia é sempre quente
A noite é fora e chuva
Como desesquecer?
Você lembra de cada folha de capim
De cada mosquito que abrigou
A amizade dos carrapatos
O carinho pela bosta
O cheiro da chuva no chão?
Como dizer
Ao que tira a paz
Ao morro, à pedra, ao azougue
Primo morro
Prima pedra
Primo azougue?

E como ruminar isso tudo
E querer mais uma vez
E uma vez mais sentir esses gostos
Se certo na vez prima
Eles já ficam amargos
Primo amargo?
Um boi não ri
E um boi não perde
Nada é riso, nada é perda
Nada é final
Tudo é primo
É preciso
De tudo fica um pouco
Primo pouco










Artur Barrio



(CORAÇÃO)

Um boi tem por si quatro estômagos
Para o mesmo, único capim
Quatro estômagos para o mesmo sabor
Ressentido tantas vezes
Criatura cerne da escassez
Sua sabedoria:
Não tanto o cuidado fanático do alimento
Mas boi pronto para o que nutre
Saber que tudo retorna
Eis o nutro

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