FERNANDO PESSOA
Fernando Pessoa é um poeta cuja importância não se limita ao universo da literatura portuguesa nem ao contínuo fluxo de inspiração no qual os poetas brasileiros muitas vezes foram buscar seiva e vigor. A obra do poeta de Mensagem vai muito além das margens do rio de uma aldeia portuguesa ou da correnteza do Tejo – legou-nos autênticas caravelas poéticas que inscreveram novos caminhos na sensibilidade humana.
Há uma passagem muito conhecida de sua carta a João Gaspar Simões em que se define como poeta dramático: “O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntma do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo”.
A concepção dramática da poesia pessoana gira em torno do eu do poeta, cindido ou multiplicado em “outros”, os heterônimos, dotados de biografia e visão de mundo próprias, num jogo ficcional no qual a arte é o espaço sem fronteiras entre revelação e fingimento, por isso pode assumir um tom multiconfessional de natureza contraditória, frequentemente, no campo do paradoxo.
Alberto Caeiro é a manifestação de uma opção filosófica implícita na negatividade da visão de Fernando Pessoa: a descrença na possibilidade de, pela razão, compreender o mundo. Todavia, em lugar de tal verificação conduzir ao desencanto ou ao desespero, leva à aceitação tácita da realidade. O mundo existe, está aí, basta senti-lo, uma vez que “há metafísica bastante em não pensar em nada”, e mesmo porque não há o que indagar.
Ricardo Reis é talvez a aceitação, apesar do pensamento. Para Caeiro, existir é um fato maravilhoso por si mesmo, e o mundo, que dispensa explicações, não terá tido nem começo nem terá fim, ou pelo menos não importa sabê-lo. Já Ricardo Reis sabe que o tempo passa e a vida é breve, porém isso não o perturba.
Álvaro de Campos não tem nem a tranquilidade saudável de Caeiro nem a indiferença olímpica de reis: ele é sôfrego, ávido, passional. O que mais pesa nele é a sensorialidade, a sensualidade, o corpo. Se não se ilude quanto à inutilidade de tudo, tampouco se nega à força da realidade que lhe faz vibrar os nervos.
Poeta cuja leitura produz simultaneamente perplexidade e maravilhamento, Pessoa deixou-nos um código poético avesso a certezas, à coerência e à classificação simplista. Em seus textos, que vivem acima das posições salazaristas, ocultistas, reacionárias, narcisistas ou olímpicas do poeta, podemos ler, na ausência de centro, na fragmentação do eu, na multiplicidade de visões, a pulverização das verdades, a polifonia do descentramento da subjetividade, a irrupção de uma poesia que desestabiliza qualquer tentativa de catalogação e enquadramento.
Já cobrado por alguns visitantes (inconformados talvez com o meu total descompromisso com roteiros ou grandezas), posto alguns poemas sem erigi-los necessariamente em meus prediletos. Aliás, acredito que os leitores de Pessoa ora se aproximam mais de um pseudônimo, ora voltam-se para outros. Há épocas em que alguns poemas nos martelam incessantemente, em outras ocasiões nos apaixonamos por outras composições. Poetas que acompanham nossas vidas têm os seus textos reescritos por nossas experiências existenciais. Às vezes deles nos apartamos, porém, quando são realmente grandes, voltamos sempre à corrente de suas palavras insuperáveis.
POEMAS
FERNANDO PESSOA, ele mesmo
Pobre velha música!
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei.
Fui-o outrora agora.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os outros que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Eros e Psique
...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no
Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
RITUAL DO GRAU DE MESTRE DO ÁTRIO
NA ORDEM TEMPLÁRIA DE PORTUGAL
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
DE ALBERTO CAEIRO
XX
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
XXXIX
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: ‒
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
DE RICARDO REIS
As rosas amo dos jardins de Adônis
As rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
Para ser grande, sê inteiro, nada
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
DE ÁLVARO DE CAMPOS
Todas as cartas de amor são ridículas
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo, neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
DE MENSAGEM
Mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Um dos poemas mais belos de Fernando Pessoa: Eros e Psique.
ResponderExcluir'A fronte esquecida': cabeça esquecida - mente (razão) esquecido (a ) de si mesmo-> sem possuir o saber, o discernimento (Psique).
-'Verde, uma grinalda de hera”, a imaturidade princípio da busca, a ausência do conhecimento ainda no estágio de iniciação, ou seja no grau de neófito.
-'Ele vem seguro'. Porque não está guiado pela razão mas pela emoção, e segue por impulso como é mencionado em outros versos “longe o infante esforçado, sem saber que intuito tem”. “ Ele buscando-a sem tino”, sem discernimento, ou seja sem a razão, sem Psique.
“À cabeça em maresia/ergue a mão, e encontra a hera”- percepção,a razão É a “tomada da consciência”, o “cair em si”, da complementaridade e da união dos opostos, como sugere a epígrafe iniciática.