Maria Teresa Horta
Maria Teresa Horta nasceu em Lisboa e fez a sua estreia no campo da poesia em 1960, com um livro de poemas cujo título é premonitório: Espelho Inicial. Jornalista de profissão, o seu nome começa por ser associado ao grupo da «Poesia 61». Mas, a partir de 1971, devido ao escândalo que envolveu a publicação das Novas Cartas Portuguesas, de que foi co-autora, e ao processo judicial que se lhe seguiu, passa a ser vista como um expoente do feminismo em Portugal.
A sua luta pelos direitos das mulheres é inseparável de uma carreira literária muitas vezes afectada, positiva ou negativamente, pelo seu posicionamento ético. No entanto, e apesar da intransigência das suas convicções, a escritora não se reconhece na imagem estereotipada da «feminista militante»: «Eu sou precisamente o contrário do que as pessoas imaginam das mulheres feministas» (Pública, 208, 21.5.00).
Se a imagem da escritora é naturalmente associada à coerência e firmeza das suas posições em prol dos direitos da mulher, é tempo de (re)lermos os seus livros um a um, e seguirmos o trajecto luminoso de uma escrita poética nascida de uma exigência radical de liberdade. O erotismo que a percorre começa por ser a denúncia da repressão sexual que pesa violentamente sobre a mulher nos anos sessenta, num momento em que é posta a nu (Reich, Marcuse) a articulação entre esta e o poder político. Mas, logo se torna perceptível que esse erotismo extremado é muito mais do que a expressão de um inconformismo lúcido ou de um exercício subversivo da liberdade. A escrita erótica de Maria Teresa Horta é sentida como uma forma intolerãvelde apropriação de um discurso do prazer, ou da fruição, que era pertença exclusiva do território masculino, não só dentro de uma ordem social e política discriminatória, mas também, e sobretudo, no interior de uma ordem simbólica, onde a própria linguagem é um instrumento de opressão. Como foi insistentemente sublinhado por Roland Barthes, a língua encarrega-se de marcar a diferença sexual e social, mantendo, por um lado, separados os géneros feminino e masculino, e confundindo, pelo outro, «a servidão e o poder» (Lição, 1979). A subordinação da mulher ao homem é função de um discurso que intenta salvaguardar os princípios da hegemonia cultural masculina, sendo o corpo feminino uma construção que se vai adaptando aos imperativos de uma ordem falocêntrica dominante.
Neste sentido, Minha Senhora de Mim (1971) é, sem dúvida, um dos livros que assinala um importante momento de viragem na escrita feminina contemporânea e, mais subtilmente, na obra da própria autora.
A poesia de Maria Teresa Horta afasta-se contudo dos imperativos definidores e delimitadores das formas mais radicalizadas do feminismo actual. A sua visão do erotismo funda-se no desejo de uma autêntica complementaridade entre a mulher e o homem e esclarece-se, quanto a nós, à luz da tese platónica da cisão originária dos seres em duas metades e da trajectória de cada uma delas em busca da outra, através do amor. Daí que a sua poesia se reconheça dentro de uma belíssima definição do erotismo dada por Bataille: «uma imensa aleluia perdida num silêncio sem fim» (O Erotismo, 1957).
Nesta obra poética, marcada por uma invulgar coerência, espelha-se uma concepção de poesia profundamente intimista e feminina, alimentada pela crença no amor único e recíproco, como forma absoluta de negar a violência da morte e a inconstância dos afectos humanos. [...]
POEMAS
Os silêncios da fala
São tantos
os silêncios da fala
De sede
De saliva
De suor
Silêncios de silex
no corpo do silêncio
Silêncios de vento
de mar
e de torpor
De amor
Depois, há as jarras
com rosas de silêncio
Os gemidos
nas camas
As ancas
O sabor
O silêncio que posto
em cima do silêncio
in Vozes e Olhares no Feminino, Edições Afrontamento,
Porto 2001, pp.
Porto 2001, pp.
Minha senhora de mim
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito
In Minha Senhora de Mim, Editorial Futura, 1974 - Lisboa, Portugal
Poema sobre a recusa
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda
Beatriz Milhazes |
Roteiro de Lisboa
Vejam meus senhores
é uma cidade
com suas crianças
homens sem idade
É uma cidade
cercada colhida
é uma cidade
uma rapariga
Casas de ocultar
os homens lá dentro
mulheres que se mostram
envoltas no vento
Vejam meus senhores
é uma cidade
com seus monumentos
histórias de braçado
Histórias de braçado
que ensinam na escola
um castelo um rei
mais uma glória
vejam meus senhores
é uma cidade
com suas crianças
homens sem idade
Lá em baixo o Tejo
que é nome do rio
a lamber as armas
com suas colunas
Com seus prédios velhos
um rio lá em baixo
a lamber as pedras
as pernas-guindastes
De onde o seus bateis
partiam diurnos
vejam meus senhores
é uma cidade
de mãos empurradas
no fundo sem idade
com suas crianças
homens dos olhos
De bruços o céu
com seus girassóis
Lisboa é cidade
com heróis de luto
O nosso amargo cancioneiro, Livraria Paisagem, 1973 - Porto, Portugal
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