Rainer Maria Rilke

 




Poeta, romancista e ensaísta que explorava temas espirituais e místicos, equilibrado entre um romantismo melancólico e o modernismo. Modernista antes do tempo e romântico muito depois de já estar fora de moda, esse célebre escritor tchecoslovaco fez uma ponte sobre o abismo da literatura alemã entre o poeta lírico Heinrich Heine e os "ismos" da década de 1920. 

René Karl Wilhelm Johann Josef Maria Rilke - mais conhecido pelo pseudônimo de Rainer Maria Rilke - nasceu no dia 4 de dezembro de 1875, na cidade de Praga, Tchecoslováquia. Sua mãe costumava chamá-lo de Sophia até ele completar cinco anos de idade, colocando nele as roupas de menina que pertenciam a sua irmã falecida. Quiçá tal fato pode ter influenciado de forma contundente em sua obra literária e em seu modo de vida. Entretanto, sua mãe também encorajou seu amor pela poesia, apresentando-lhe a obra do grande dramaturgo alemão Friedrich Schiller.
Por toda a vida, Rilke estaria cercado de mulheres influentes e intrigantes; contudo, nenhuma foi mais marcante que a romancista e psicanalista russa Lou-Andreas Salomé (1861-1937), que coincidentemente também foi o grande "amor platônico" do renomadíssimo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), o qual igualmente não resistiu aos encantos irradiados por essa misteriosa mulher... Salomé introduziu Rilke na colônia de artistas de Worpswede onde vivia a pintora Paula Modersohn-Becker, pioneira do expressionismo. Lá, ele conheceu aquele que viria a ser sua esposa, a artista Clara Westhoff, que por sua vez o apresentou ao seu professor, o escultor Auguste Rodin, para quem Rilke trabalhou como secretário a partir de 1902.

Inspirado em Rodin, Rilke desenvolveu um novo tipo de poesia deliberadamente calcado nas esculturas do artista. Eram os seus "Dinggedichten" (Poemas-coisa), que condensavam observações objetivas em versos poderosos. Entre 1912 e 1922, desalojado pela Primeira Guerra Mundial, Rilke trabalhou em sua obra-prima, Elegias de Duíno. Em um frenético período criativo de dois meses, ele completou as elegias e escreveu o belo Sonetos a Orfeu (obra publicada em 1922), no qual o poeta fala sobre a proximidade da morte. Após essas duas importantes sequências, a saúde de Rilke decaiu e ele passou os cinco anos seguintes viajando entre um sanatório em Territet, na Suíça, e Paris. Apesar do diagnóstico de leucemia, ele produziu um conjunto de poemas em francês com base nas meditações sobre a rosa que ele acreditava causar sua morte. Faleceu no dia 29 de dezembro de 1926, na cidade de Montreux, na Suíça. 

Além das obras apresentadas anteriormente, publicou outras belíssimas, tais como o romance Laurids Brigge (publicado em 1910), as obras poéticas Leben und Lieder Vida e Canções, em português - (publicada em 1894), Neue Gedichte Novos Poemas, em português - (publicada em 1907), Der Neuen Gedichte Anderer Teil A Outra Parte dos Novos Poemas, em português - (publicado em 1908) e na não-ficção publicou em 1934 Cartas a um Jovem Poeta.


POEMAS



O torso arcaico de Apolo

Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.

(Tradução: Paulo Quintela)


 

- Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?

Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.

Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.

(Tradução: Paulo Plínio Abreu)


Manuscritode Hora Grave























Hora Grave

Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.

Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.

Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.

Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.

(Tradução: Paulo Plínio Abreu)




Morgue

Estão prontos, ali, como a esperar
que um gesto só, ainda que tardio,
possa reconciliar com tanto frio
os corpos e um ao outro harmonizar;

como se algo faltasse para o fim.
Que nome no seu bolso já vazio
há por achar? Alguém procura, enfim,
enxugar dos seus lábios o fastio:

em vão; eles só ficam mais polidos.
A barba está mais dura, todavia
ficou mais limpa ao toque do vigia,

para não repugnar o circunstante.
Os olhos, sob a pálpebra, invertidos,
olham só para dentro, doravante.

(Tradução: Augusto de Campos)



                 
A pantera

      No Jardin des Plantes, Paris

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

(Tradução: Augusto de Campos)


A Gazela

                            Gazella Dorcas

Mágico ser: onde encontrar quem colha
duas palavras numa rima igual
a essa que pulsa em ti como um sinal?
De tua fronte se erguem lira e folha

e tudo o que és se move em similar
canto de amor cujas palavras, quais
pétalas, vão caindo sobre o olhar
de quem fechou os olhos, sem ler mais,

para te ver: no alerta dos sentidos,
em cada perna os saltos reprimidos
sem disparar, enquanto só a fronte

a prumo, prestes, para: assim, na fonte,
a banhista que um frêmito assustasse:
a chispa de água no voltear da face.

(Tradução: Augusto de Campos)




São Sebastião

Como alguém que jazesse, está de pé,
sustentado por sua grande fé.
Como mãe que amamenta, a tudo alheia,
grinalda que a si mesma se cerceia.

E as setas chegam: de espaço em espaço,
como se de seu corpo desferidas,
tremendo em suas pontas soltas de aço.
Mas ele ri, incólume, às feridas.

Num só passo a tristeza sobrevém
e em seus olhos desnudos se detém,
até que a neguem, como bagatela,
e como se poupassem com desdém
os destrutores de uma coisa bela.

(Tradução: Augusto de Campos)





O Anjo

Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas Ihe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem

à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.

(Tradução: Augusto de Campos)


Fonte Romana

                               Borghese

Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais em baixo, a esperar,

muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;

ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante-
mente, impassível e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

(Tradução: Augusto de Campos)





Dançarina Espanhola

Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

(Tradução: Augusto de Campos)





O Cego

Ele caminha e interrompe a cidade,
que não existe em sua cela escura,
como uma escura rachadura
numa taça atravessa a claridade.

Sombras das coisas, como numa folha,
nele se riscam sem que ele as acolha:
só sensações de tato, como sondas,
captam o mundo em diminutas ondas:

serenidade; resistência -
como se à espera de escolher alguém, atento,
ele soergue, quase em reverência,
a mão, como num casamento.

(Tradução: Augusto de Campos)




Exercícios ao Piano
 
O calor cola. A tarde arde e arqueja.
Ela arfa, sem querer, nas leves vestes
e num étude enérgico despeja
a impaciência por algo que está prestes

a acontecer: hoje, amanhã, quem sabe
agora mesmo, oculto, do seu lado;
da janela, onde um mundo inteiro cabe,
ela percebe o parque arrebicado.

Desiste, enfim, o olhar distante; cruza
as mãos; desejaria um livro; sente
o aroma dos jasmins, mas o recusa
num gesto brusco. Acha que á faz doente.

(Tradução: Augusto de Campos)


O Castelodo Duíno





















O Solitário
 
Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

(Tradução: Augusto de Campos)


MANUSCRITOS DAS ELEGIAS DE DUINO
























O Fruto
 
Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.

Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.

E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.

(Tradução: Augusto de Campos)




O mundo estava no rosto da amada -
 
O mundo estava no rosto da amada -
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.

Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?

Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.

(Tradução: Augusto de Campos)

Comentários

  1. Fascinada com seus blogs...serei visita constante, pode acreditar. Convido-o a visitar o meu Pimenta e Poesia...ele anda passando por uma crise, uma vez que reflete o meu interior, mas tem coisa boa lá...Parabéns pela qualidade dos seus espaços poéticos, muito rico e realmente tocante sobretudo para uma amante da Literatura, como eu. Um abraço.

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  2. Copiei vários poemas do Rilke, para publicá-los no Recanto das Letras. Rilke, doce carma.

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