João Cabral de Melo Neto

Preciso respirar, a poesia atual precisa respirar. Todos aos balões de oxigênio. Então ao gênio construtor, mergulho tríplice na arquitextura, invasão da oficina onde Cabral fabricava vacinas contra a obviedade patético-poética. Um dizer afiado, um risco, uma aventura ou rasura no deserto.  Palavras-ponte sobre o leito seco de rios que correm nas veias dos seres humanos.

Para o meu amor em pedaços, para a minha calvície, para a minha melancolia ácida, para o meu niilismo militante, para a nossa dor de cabeça e de barriga, para o fantasma do desemprego e das dívidas, nada melhor do que drágeas de Cabral três vezes ao dia. 

Leia o primeiro poema após o café da manhã, o segundo após o almoço e o terceiro após a jantar. Em sete dias o seu amor estará de volta, você encontrará um bom emprego ou acertará na loteria. É tiro e queda. (Vou ver se daqui a sete dias a minha musa secreta me telefona. Se isso acontecer, a afirmação realmente fará sentido).







Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

                        2.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(In Antologia poética. 7ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 17-18.)




Catar feijão

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
E jogar fora o leve e oco, palha e eco.

                           2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
O de que entre os grãos pesados entre
Um grão qualquer, pedra ou indigesto,
Um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
A pedra dá à frase seu grão mais vivo:]
Obstrui a leitura fluviante, flutual,
Açula a atenção, isca-a com o risco.

(In Antologia poética. 7ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 18-19.)





Rios sem discurso

Quando um rio corta, corta-se de vê
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
    fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

(In Antologia poética. 7ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 23.)

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