NUNO RAMOS



 Antes mesmo de sua publicação em livro, Junco ganhou de alguns de seus leitores um epíteto – “a máquina do mundo cão” – que parece difícil de descolar desse conjunto de poemas em que Nuno Ramos vem trabalhando nos últimos catorze anos. Não é preciso adivinhar a referência à busca do sentido do mundo, à “total explicação da vida” que espantosamente se abre aos olhos de um caminhante solitário, ainda que para se recolher, logo em seguida, e sem desfazer o enigma, como no poema de Drummond. A máquina do mundo se expõe diretamente aí em nota e em recortes brevíssimos, encravados nos textos. E se oferece, ainda, como cena primordial – no meio do caminho da vida – que organiza a paisagem marítima infernal – praia, praia, praia, praia – na qual se opera um misto de junção e tensão figural, que estrutura, em via dupla, mas em mútua interferência, a série poética de Nuno Ramos, entre os restos de um cachorro morto largado no asfalto e os de um cadáver de árvore, junco jogado na areia. E também entre texto e fotografia – pois, ao lado da sucessão de refigurações de cão e junco, reitera-se literalmente, ao longo do livro, a exposição de imagens do tronco na beira domar e do cachorro morto no chão.

A trama dupla, no entanto, se sugere o analógico, é para travá-lo em seguida. Mesmo que as fotos os apresentem em disposição quase idêntica, parecendo reforçar comparações, é impossível não ver a matéria diversa de que são feitos animal e caule. Pois cão é cão e junco é planta. E mesmo que o caule se exponha como cão-lagarto, lambendo algas, e ao cão, no asfalto, se possa ver como junco, lenha, banha, planta, persiste a dissimetria. E é pela insistência nesse paralelismo, mas a distância, das imagens que Nuno Ramos se avizinha, em movimento largamente expansivo, do belíssimo jogo entre bala, relógio e lâmina, realizado por João Cabral de Melo Neto em Uma faca só lâmina. Acrescentando-se, assim, a um modo cindido de figuração (reduplicado, ainda, entre lágrima e onda) outra tens articulação – entre o poema narrativo e a composição serial, e entre o formato circunflexo, expressivo, do rosto e o livro silencioso de areia com que se encerra o último poema.

Texto de Flora Süssekind na orelha de Junco, São Paulo, Iluminuras, 2011, do qual foram retirados os poemas de Nuno Ramos transcritos abaixo. 





DEZ POEMAS


1.

Cachorro morto num saco de lixo
areia, sargaço, cacos de vidro
mar dos afogados, mar também dos vivos
escuta teu murmúrio no que eu digo.

Nunca houve outro sal, e nunca um dia
matou o seu poente, nem a pedra
feita de outra pedra, partiu o mar ao meio.
Assim é a matéria, tem seu frio

e nunca vi um animal mais feio
nem pude ouvir o seu latido.
Por isso durmo e não pergunto
junto aos juncos.

12-96/01-03

(p. 11)


2.

Um junco jogado na praia
um junco dourado, o sol sua mortalha
sobre a rocha, farinha
moída pela água.

Cão-lagarto lambendo algas marinhas
cadáver de uma árvore boiando
sono de uma pedra
luto iluminado e pernas nuas.

Praia cheia de ganidos
e defuntos
cheia de ser luz, espuma
que o mar em ré recusa.

Parede nenhuma, abóbada vazia
ovário e cemitério dos siris.
03-97

(p. 13)


5.

O dia (leite) talha
a verde antiga planta feita palha
e o vento vela, a chuva caia
peso e pedra, pó e praia.

A proa da canoa
presa no assoalho
de areia é retalho da maré cheia
gravado no cascalho.

Seu naufrágio e cenário
Sua cova e ovário.

19-97/12-98/11-03

(p. 19)


 


8.

Perder
perder o pássaro que se protege
ferir sua penugem
contra a grade da gaiola
Perder é uma argila

Misturada a folhas secas
é um mar monótono
de amido e de saliva
o dia amanhecido
num retalho aveludado.

Perder é o selo de uma carta
o toco de um cigarro
o laço da gravata
que a maré depois coleta
na orla sinuosa.

Ou ecos inconformados
assim: eu não, ainda não
não é a minha vez
Ainda. Até que em meio
a tanto tecido

morto, molhado
o mineral (que há)
se encrespa
e dorme geológico
dentro de você.

Como um magneto, um megalito
um pâncreas calcário.

02-98/02-04/03-09

(p. 26-27)


12.

Punhado de cal dentro da fronha
dente de leite guardado num muro
de areia, corpo esmaltado, cerzido

com sal e amido, parte de um
nome, noites de giz e de sono
sem matéria ou contorno

abrem os braços para mim.

03-09

(p. 37)




13.

Corvos
calvos
os alicates das mandíbulas
em pequenas bicadas
(depois saltam nos pés de mola).

Irmãos da matéria
no curso de volta
à confraria
cinza
de antigos corpos.

05-09/01-03/02-04

(p. 39)


18.

Eu não explico. Mordo
ou vejo as partes duras
movendo-se como formigas
(sorvete de flocos
guizo de cinzas).

Eu não entendo. Voo
como um tronco pisa
raiz adentro. Aliso
a penugem, inclino
a vassoura, bruxo.

Eu não escrevo. Vivo
como um urubu de feltro
imóvel entre a carniça
dra desses carros.
Bato em vidros

que não há, mas derrubam.
Procuro no núcleo
azul o útero exato
que exala essa fornalha
até mim

o último urubu do mundo.
Furo o vácuo
e minha pálpebra
fecha
feito escudo quando ataco.

02-08/02-09/01-11

(p. 50-51)


27.

Se aumento
o número de palavras
o mundo, meu mundo, este mundo
que me abraça e que respiro
este conjunto de bolhas e besouros
estoura.

Notícia
poema, samba
coração cenário
grafado num tronco:
a cusparada
da chuva sabe mais.

06-08

(p. 71)



31.

Rep
ara
nada para
até a casca
das árvores e a pedra
das ostras passam por ti
os ossos
dos mortos, t
eus mortos
todos
- cão, latido, minuto
sapato engraxado
enterro do pai –
alinham-se só
par
a ti, repara
nada para
nem os mortos.

06-8/03-09

(p. 81)


35.

Um poema se fez!, aviso
num pito
voltem à praia onde juncos
moles, brancos
aspargos sobre carvalhos mortos
boiam formando palavras
num espelho de algas
moídas com olhos enormes.
Voltem à praia onde cães
predando os próprios ossos
como donos do sol
riem de nós, mas por nós.
Ali encontrarão minha cara.

Cansados, pregados
ao chão, viúvos
obesos, orelhas
abertas à espreita
apenas
espantam o poema.

06-08/03-09/10-09/03-10

(p. 89)

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