Lara Amaral
Lara Amaral, uma
das vozes mais promissoras de nossa literatura, nasceu em Brasília em 23 de
novembro de 1986. Formada em Jornalismo, escreve poesia desde os 13 anos de
idade, vez ou outra também se aventura no terreno dos contos. Alguns poemas
foram publicados na coletânea “Maria Clara: universos femininos” (Editora:
LivroPronto). Seus textos podem ser encontrados no blog Teatro da vida Inúmeros poemas de sua autoria têm circulado em espaços de grande relevância literária -
Revista Zunái, Musa Rara, Mallarmargens, Ellenismos, Germina,
entre outros.
No amplo universo da poesia contemporânea, Lara escava infinitos com
lâmpada de lucidez e sombras. As linhas de uma poética em expansão do íntimo,
em purga de licor amargo da anima
feminina, expelem o intragável para exorcizá-lo com agulhas de aguda
investigação física e metafísica das falhas e limites do corpo e seus nomes.
A melancolia é o topos de onde
brotam muitos de seus poemas. Melancolia aqui, platonicamente, como fio
condutor à “mania divina”, como o vento instalado na alma quando alguém sai de
si mesmo para abraçar o inapreensível. A poesia de Lara parece dar validade ao
que Agamben escreveu em Estâncias
sobre a figura do anjo alado de Dürer, símbolo da melancolia matricial das
artes.
Os poemas aqui reproduzidos foram retirados do site da autora.
Trabalho de Louise Bourgeois |
Tessitura
acomodação
têxtil
somos um
o sofá e eu
anca encaixada
em um dos braços
de apoio
somos o mesmo
na direção a fitar
até nesse sentir avesso
ao tampar-se com a manta
não de dormir, de assistir ao
teto
ao rodapé
onde pousa fácil a vista
na filigrana raspada da parede
amanhã eu emasso e pinto
e saio daqui
não enquanto
ele e eu cobertos
dos dias evitando
o empoeiramento
Pedra,
demasiado pedra
“É penedo, se limar um pouco,
ajuda.”
“Precisa lapidar isso tudo que
entulha!”
Oh, que bruta!
Era a mesma ladainha:
“Tem de mudar, polir!”
Eu discutia, antes. Agora: muda –
muda.
Joguei-me umas dezenas de vezes
da ladeira,
rolei para ficar redonda.
Esfera de ônix forçando o encaixe
em conversa de tabuleiro de
mármore.
Lá embaixo, sempre um caos de
minérios,
todos sem valor no mercado.
Rochas me aparavam sem querer,
não podiam sair da fila;
outras continuavam caindo.
Fui ferida numa ponta que ficou
por lixar.
Estou bem assim? Já posso
refletir seu rosto
com menos pânico? Ou não sou
preciosa o bastante
para brilhar à luz de fundo?
Talvez radioativa, no escuro.
Sou das mudas, mudas.
Finjo que minha loucura é dessas,
que ser feliz
é vestir roupinha nova, ter salto
tinindo
como ametista; comprar, comprar,
lascar...
Depois eu que sou bronca.
Para que vestir calhau, com essa
cabecinha já tão calva
de limar? Tanto trabalho para
nada...
É, eu não entendo de mitos de
bar,
mas balanço a cabeça em falsa
concórdia – só cuido
de não friccionar muito e atear
fogo – pesam-me um pouco
os quilates-miolos dos seus ouros
de tolo,
demasiado tolos.
Mas veja, estou sem fala,
aproveitei para esfolar
a boca no rochedo enquanto rolo.
A face já desfigurada, mas há na
base do barranco
canetas permanentes pra pichar
sorriso afônico.
sorriso afônico.
E olha o que encontro lá embaixo!
Pedras novinhas em folha,
esticadas e luzindo
para o próximo verão; os trajes
caindo como luva
de pelica em cascalho.
Há quem se espante com a previsão
de granizo.
Os meteoritos?
Arremessam-se todos.
Sem
face
Quando parte alguém
que te viu
de dentro, finda
a possibilidade de um amor
[há poucas, quase
nenhuma delas.]
Se resolve ir-se
para sempre, rui
a promessa: um beijo
em cada pálpebra
[não estive perto
o bastante.]
Conjurei o instante
de roçar os cílios...
de roçar os cílios...
escapam
agora entre meus dedos
[seus cachos
sem textura.]
Arbitragem
Se eu me for
agora
definitivamente, irá
metade da minha mãe
uma amizade antiga contorcerá
remorsos
o primeiro amor tirará a tarde
livre
dirá ao novo amor que precisa
trabalhar
e chorará por horas a minha
ausência
que nem era há tanto uma falta
numerosa.
O restante do efeito dominó pouco
importa, nem mesmo
a primeira peça que se derruba à
respiração profunda
de quem desistiu
em tempo diverso, desconexo, cada
um
encontra a cura, um tampão, ou
forma
de culpar quem vai porque quis
a liberdade: utopia clichê,
história para não dormir,
conto que diminui um ponto
onde antes havia alguém,
personagem do próprio,
menos da vida – desvia,
ordinária.
Ser livre...
não se escolhe
nascer
sequer
morrer em paz.
Letargia
Amo como quem morre
Não de tanta entrega
Mas de deixar-se corroer
Para restar o silêncio de um
corpo
E a falta do sentir
Escrevo como quem vive
Reencarnando personagens
Possivelmente mais tristes
Até que eu seja só partícula
De algo que não me reconheça
Úlcera
tentativa insana
No estômago, ranhuras
não é fome
sede, talvez
que cala
a boca
entreaberta
esbranquiçada
lânguida
a língua umedece
lábiostentativa insana
a palavra pronuncia-se
entrecortada
vocifera, imprópria
derrama-se
no seio
intumescido
que infla sangue
e expulsa
não se cura mais
o que desceu do peito
úlcera
Verso
intragável
Numa hora dessas
eu abriria a porta da rua
sentaria ao sereno
e fumaria um cigarro
no entanto, sofro
eu abriria a porta da rua
sentaria ao sereno
e fumaria um cigarro
no entanto, sofro
de outro vício
acendo um poema
acendo um poema
mas ele não me traga
nem me larga
deixo-o queimar.
Céu amputado
você já me leu
aqui dentro?
o vento entorta
todos os caules
a casa sobrevive
mas fica puída
há aquele som medonho
quando ele penetra
forçadamente as frestas
quase o ouço dizer algo
geme
sinto o ventre da madeira dilatar
você já me sentiu
daqui de dentro?
os braços arqueados para trás
aerodinâmica, deixo
ossos arfarem, pneumáticos
sibilos perpassando o corpo
não falo
outra língua, a do ar
que me diz
: eu te desvendo
mas não entendo
porque não posso voar
Escoras
há em mim
um abrigo de escorpiões
os amigos presenteiam-me
com caixas de abelhas
guardo tudo
para um futuro próximo
e infinito
os pedintes vêm
e me estendem a mão
ponho suas migalhas
em minhas teias
amarro meu coração
com arapucas
há em mim
ruínas de uma igreja
um confessionário calado
ressonando cânticos de dor
há um universo em terremoto
casas desconstruídas
nas rachaduras da alma
para o poente voltadas
todas as minhas janelas
Life is a bitch
Diga que deus está morto e
conheça
318 protestantes contra o abismo
da fé
todos em guarda à borda do
deslizamento
gritando-te impropérios num falso
aramaico
exorcizando tua língua profana
enquanto têm seus corpos cozidos
pelo vulcão cuspindo dízimos.
Escreva que viver não vale a pena
e ganhe de brinde
669 pseudo-hippies-liberais
amantes inveterados da paz
felizes à beça – enrolando
suas ervas, “o que está rolando?”
encarando a realidade de costas
e com muito lubrificante
limpam suas catapultas, desvestem
as carapaças e te atiram à cova
dos leões.
Ceda à hipocrisia e se entregue
ao ópio com os jovens nos bares
siga o mantra: “a vida é bela”
use palavras difíceis para vencer
qualquer discussão sem fundamento
e acorde com um tumor
generalizado
o sol queimando o quarto em seu
último
dia na Terra – realidade
apocalíptica
amanhece em céu vermelho de anjos
sem paraíso: sexualizam-se para
conseguir
abrigo, enturmam-se entre os
brindes
de alto teor alucinógeno, ouvem a
última
trombeta e viram de uma vez as
sete taças
afundam-se no mesmo declínio
humano, caem
incessantemente de um espaço
a outro, tanto faz, qualquer
camada
é o mesmo inferno:
Benvenuto!
Espelhos
d'água
venha ao mirante
e veja
o que não perdeu
entrada franca
mas limpe os pés no capacho
do peito
habituado, você sabe
aqui dentro o vento faz a curva
como a água nos calcanhares
à beira-mar, parte tenta retornar
ao fundo, a areia algema
os tornozelos
soçobram os dedos devagar, o sal
até o topo das cutículas
queima os cantos que comi
foi-se a época que eu tentava
emergir, agora nem preciso
cavar, afundo mansamente
um vai e vem
de algas arranhando as pernas
mais algumas voltas que me derem
essas ondas
viro estante de coral
ou canto triste
para as conchas
a Lara é uma poeta e tanto
ResponderExcluirparabéns
Prezado Assis Freitas, é muito bom saber que a poesia de Lara, ainda tão nova e em expansão crescente, encanta poetas de seu nível, como demonstra o belíssimo poema "Sonata para uma gioconda em tessitura maior", com o qual você a homenageou,e que li em seu blog Árvore da Poesia:
Excluir"não te chamarei musa
a delgada saliência da pele
tampouco te nomearei flor
esses equinócios do teu olhar
só sei que de ti habito equívocos
nenhum sortilégio de algas ou mapas
apenas a tonta reminiscência do lilás
esta ausência em chamariz"
incendiando o meu peito gris"
Nossa, que surpresa linda! Obrigada demais, poeta! Bom ser admirada por quem admiramos também. E belos os seus dizeres sobre minha poesia, coisa de quem realmente me lê a fundo.
ResponderExcluirBeijo.
Lara, não me agradeça não. Você é excelente. Além disso, há algo em seus textos que me soa estranhamente familiar, como se, em alguns momentos, caminhássemos em terrenos muito próximos, quase na mesma geografia de sombras.
Excluira sensibilidade vive em tensão na linguagem poética de lara. aberturas para o ser. parabéns! beijos.
ResponderExcluirLuciana, obrigado pelo comentário que condensa aquilo que o poeta Marcelo Ariel, ao apresentar os textos de Lara no site Musa rara, afirmou: "Nos poemas de Lara Amaral existe um exercício de autoinvestigação do mundo, a função mais urgente de uma poesia segundo as entrelinhas do pensamento de Emersom e de seu discípulo Borges, eis aqui uma poética que tenta cancelar as fronteiras entre exterioridade e interioridade, onde o horror é um cenário montado ironicamente por uma poderosa imagética".
ExcluirLara é uma poeta maravilhosa de sensibilidade peculiar. Concordo em número e grau, ela encanta toda a blogosfera e move, inspera muitos poetas/artistas/pessoas. bjs
ResponderExcluirBelo post!
ResponderExcluirMais que merecido, Lara!
Parabéns a ambos. Trabalho lindo.
Tania, obrigado por suas palavras. Todos na torcida para que os poemas de Lara breve saltem nas páginas de um livro.
Excluirsalve... esta poesia já se consolidou, sem promessas. Lara é brilhante!... parabéns!
ResponderExcluirWilson, fico feliz que o talento de Lara já seja reconhecido por aqueles que realmente amam a poesia.
ExcluirQue beleza, sua leitura e a seleta :)
ResponderExcluirNina, vou pregar seu elogio numa moldura e passar a noite toda embevecido, bebendo garrafa e meia de vinho. Elogio vindo de você é prova de que acertei o alvo com a minha pistola de poesia a laser. Lara parece ter a poesia impregnada no próprio olhar.
ResponderExcluirNossa, quantos queridos vieram aqui, muito obrigada a todos! =)
ResponderExcluirLara é, na blogosfera, uma poeta que me encanta. Uma poesia madura, para seus vinte e poucos anos, uma poesia de quem já viveu muitas vidas em uma. A melancolia é um espelho em que me vejo muito. É a alma da poesia de Lara, eu diria. Seu texto é perfeito, retrata, na minha opinião, a alma da poeta. E é um retrato feito de pura poesia, seu texto é muito poético e bonito!
ResponderExcluirBela seleta! Não há como sair incólume diante das imagens que Lara apresenta em sua poesia. Uma alegria vê-la conquistar outros espaços!
ResponderExcluirJosé Antonio,
ResponderExcluirRapaz, como é que te agradeço pelo encantamento que teu blog me causou?!? Topei com você quando procurava a análise pignatariana do "Áporo", e aí fiz uma caminhada pelas veredas do teu sertão internético...
Te dizer "obrigado!" é pouco, mas, saiba, digo isso do fundo da minha mentecoração!!!
Deus esteja! Viver é mesmo muito perigoso, mas é bom pra daná também, não é?!
Abração!
Lara, você deixa-me mudo de espanto - eu que julgava já não ser surpreendido com esta idade... Você é uma das melhores razões de ser para o futuro. Quantas arestas quebradas para ficar tão polida, tão brilhante, lá no fundo do poço em que quereria mergulhar para libertá-la do estrume da poesia. A língua portuguesa precisa de você. Mas merece-a?
ResponderExcluiramp - Porugal
Desculpe voltar: é para dizer que, quando eu for novo, quero escrever como você.
ResponderExcluiramp
Saudade
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