Manuel Bandeira
Em
algum dia de 1897, um pequeno peregrino pernambucano assistia, no Colégio Pedro
II , a uma aula de alemão. Os olhos fixos aguardavam o recreio. Nunca alguém
poderá saber o que três amigos - o jovem estudante, Antenor Nascentes e Sousa
da Silveira - conversaram. minutos depois, no pátio. Com o alemão o jovem se
reencontraria em Clavadel, antes de traduzir textos de Goethe, Heine, Schiller.
Naquele momento, antes de outras aulas com Said Ali, João Ribeiro e José Veríssimo, não poderia prever que anos
mais tarde voltaria ao colégio como professor. Ao retornar, talvez se lembrasse
ainda da correção feita por José Veríssimo, professor de Geografia atento às
questões da língua, à pronúncia do termo Capiberibe. A deliciosa flutuação das
duas formas do nome do rio no leito do poema, sim, nasceu em uma sala do
Colégio Pedro II. Certamente, ao começar a escrever o poema solicitado por
Gilberto Freyre sobre o Recife, o poeta anexara aos seus domínios outras
sonoridades, E como os grandes poetas apenas nascem, Manuel Bandeira nunca
deixará de existir. Parabéns, Manuel Bandeira!
Evocação
do Recife
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e
[partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
[na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras,
[mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma
rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande
dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho
[sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos
[em jangadas de
bananeiras
Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão
[nos meus cabelos
Capiberibe
— Capibaribe
Capiberibe
— Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os
pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
Rio, 1925
In: BANDEIRA, Manuel.
Estrela da vida inteira. 4a. edição.
Rio de Janeiro: José Olympio,
1973, pp. 114-117.
Boa partilha
ResponderExcluirObrigado pela visita Um abraço.
ExcluirPoema muito significativo da obra do autor!
ExcluirSaudações poéticas!
Belíssimo texto, moderno e eterno.
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