Conceição Evaristo
Conceição Evaristo, vencedora
do Prêmio Jabuti do ano passado - categoria contos e crônicas, com o livro Olhos D’água, é uma das vozes mais
fortes da literatura atual. Dona de uma linguagem que alia contundência e
qualidade, crava nas letras de seus textos estacas sobre as feridas,
infelizmente sempre renovadas, abertas pelos preconceitos racial, sexual e
social que desabam com muito maior intensidade sobre a mulher negra e pobre.
Nascida numa favela de Belo Horizonte, conseguiu
conciliar com grandes dificuldades o trabalho de doméstica com os estudos. Após
concluir o curso Normal, ingressou no magistério. Posteriormente, estudou Letras
na UFRJ. Fez mestrado em Literatura Brasileira na PUC-Rio, tornou-se doutora em
Literatura Comparada pela UFF. Seus escritos começaram a ser publicados nos “Cadernos
Negros”, uma iniciativa do Grupo Quilombhoje, de São Paulo, Hoje é
ficcionista e poeta consagrada, estudada em universidades e com obras traduzidas
em outras latitudes.
Publicou
Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006) – romances -,
além de Insubmissas lágrimas de
mulheres (2011) – contos.
Da
Calma e do Silêncio
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
In Poemas da recordação e outros movimentos.
Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
Recordar
é preciso
O mar vagueia
onduloso sob os meus pensamentos.
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento de vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga.
Mas os fundos oceanos não me amedrontam nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento de vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga.
Mas os fundos oceanos não me amedrontam nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.
in Cadernos Negros – vol. 15
Todas
as manhãs
Todas as manhãs
acoito sonhos
e acalento entre a unha e a carne
uma agudíssima dor.
e acalento entre a unha e a carne
uma agudíssima dor.
Todas as manhãs tenho
os punhos
sangrando e dormentes
tal é a minha lida
cavando, cavando torrões de terra,
até lá, onde os homens enterram
a esperança roubada de outros homens.
sangrando e dormentes
tal é a minha lida
cavando, cavando torrões de terra,
até lá, onde os homens enterram
a esperança roubada de outros homens.
Todas as manhãs junto
ao nascente dia
ouço a minha voz-banzo,
âncora dos navios de nossa memória.
E acredito, acredito sim
que os nossos sonhos protegidos
pelos lençóis da noite
ao se abrirem um a um
no varal de um novo tempo
escorrem as nossas lágrimas
fertilizando toda a terra
onde negras sementes resistem
reamanhecendo esperanças em nós.
ouço a minha voz-banzo,
âncora dos navios de nossa memória.
E acredito, acredito sim
que os nossos sonhos protegidos
pelos lençóis da noite
ao se abrirem um a um
no varal de um novo tempo
escorrem as nossas lágrimas
fertilizando toda a terra
onde negras sementes resistem
reamanhecendo esperanças em nós.
in Cadernos Negros – vol. 21
A
noite não adormece nos olhos das mulheres
Em memória de Beatriz Nascimento
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não
adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
in Cadernos Negros – vol. 19
Eu-Mulher
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios
vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que
há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
In Poemas da recordação e outros movimentos.
Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
In Poemas da recordação e outros movimentos.
Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
Do
feto que em mim brota
Do meu corpo
o feto ossificado
há de brotar um dia.
Ele apenas se escondeu
nos vãos de minhas
sofridas entranhas,
enquanto eu de soslaio
assunto a brutalidade
do tempo.
Do meu olhar
a flor petrificada
em meu íntimo solo
contempla a distração de muitos
e balbucia uma estranha fala,
mas, eu sei qualquer dizer,
pois, quem convive
com os forçados à morte,
decifra todos os sinais
e sabe quando o silêncio,
julgado eterno,
está para ser rompido.
Do meu corpo
o feto ossificado
há de brotar um dia.
Ele apenas se escondeu
nos vãos de minhas
sofridas entranhas,
enquanto eu de soslaio
assunto a brutalidade
do tempo.
Do meu olhar
a flor petrificada
em meu íntimo solo
contempla a distração de muitos
e balbucia uma estranha fala,
mas, eu sei qualquer dizer,
pois, quem convive
com os forçados à morte,
decifra todos os sinais
e sabe quando o silêncio,
julgado eterno,
está para ser rompido.
In Poemas da recordação e outros movimentos.
Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
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