Assionara Souza



























Acordar segunda-feira numa terra mais vazia porque em outra cidade Assionara Souza não espalhará mais o sol da poesia.

A mulher de Lot

Um passo atrás
Enquanto a cidade desaba
Todos correndo
Um tumulto dos diabos
O filho, a filha, o marido
A vizinha da frente - com quem o infeliz tem fornicado
Há mais de cinco anos embaixo de seu nariz
Como se ela não soubesse
Como se ela não tivesse visto de tudo nessa vida
Ele perguntando se a camisa vermelha
- Aquela com um só bolso no lado direito?
- Sim. Essa mesma.
Se a camisa vermelha não estava limpa e bem passada
E o filho indo no mesmo caminho
Tratando-a feito lixo
- A mãe não sabe pronunciar a palavra "estultícia". Tenta mãe!
Estúpidos todos
Até a filha, que ela tanto ensinou
Agora andava com um centurião
Um centurião!
Maior desgosto para uma mãe
E depois dessa correria toda
Quando arrumassem pouso
Adivinhem quem prepararia o jantar!
Não teve a menor dúvida
Mirou a cidade em chamas
Uma sensação incrível
Deixar de ser uma mulher de pedra
Seu corpo inteiro puro sal rebrilhando ao sol




















Uma garota de sorte

L. tem uma sorte do caralho, apesar de ter buceta
Buceta fode com tudo
Força o pai de L. a estuprá-la desde os 13
Força a mãe de L. a fingir que não sabe de nada
Força o corpo de L. a engravidar aos 14
Força L. a praticar um aborto

Pra abrir as pernas e dar a buceta
L. teve maturidade
Para abrir as pernas e dar o rabo
L. foi autossuficiente
Para assumir uma criança, não
O crime de L. é inadmissível
L. é uma assassina de criança
L. impediu que uma criança viesse ao mundo e fosse feliz
(ainda mais se nascesse sem buceta)
A sorte de L. é que ela tem uma sorte do caralho
Se L. tivesse 18 anos, iria presa
Se L. tivesse 18 anos, iria ser estuprada na prisão
Mas L. tem somente 14
L. foi somente estuprada pelo pai
L. ficou somente grávida do pai
Ser estuprada na prisão é humilhante demais para um corpo
O promotor faz L. perceber o quanto ela é uma garota de sorte

"Pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é autossuficiente, e pra assumir uma criança, não."
Tu é uma pessoa de sorte, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na Fase, pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá."
(Theodoro Alexandre da Silva Silveira - promotor de justiça)

Assionara Souza. Escritora, nascida em Caicó/RN e radicada em Curitiba/PR. Formada em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, é pesquisadora da obra de Osman Lins (1924-1978). Autora dos volumes de contos Cecília não é um cachimbo(2005), Amanhã. Com sorvete! (2010), Os hábitos e os monges(2011), Na rua: a caminho do circo (2014) — contemplado com a Bolsa Petrobras, 2014; e Alquimista na chuva (poesia, 2017). Sua obra tem sido publicada no México pela editora Calygramma. Participa do coletivo Escritoras Suicidas. Idealizou e coordenou o projeto Translações: literatura em trânsito [antologia de autores paranaenses: http://www.literaturaemtransito.com]. Estreou na dramaturgia escrevendo a peça Das mulheres de antes (2016), para a Inominável Companhia de Teatro. Faleceu ontem, dia 20 de maio de 2018, em Curitiba, onde vivia.

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