Eucanaã Ferraz
Conheci Eucanaã Ferraz durante o Mestrado em Ciência da Literatura na UFRJ. Graças a um curso ministrado por ele, encontrei um caminho para estudar a poesia de Cacaso. O olhar penetrante de poeta antenado com as coisas do mundo lançou-me a dimensões insuspeitas da cidade. Apresentou-me Giulio Carlo Argan, e meu coração de baldios suburbanos testou novos ângulos urbanos. Ainda não existia o Cidades rebeldes, de David Harvey, mas as cidades já eram ruínas em disputa. Lembrei-me, ao ler o livro agora, de Eucanã lendo este poema na FLIP de 2015. Bem de acordo com a frase com a qual encerrou a sua intervenção - "A poesia é uma ameaça".
Coloquei abaixo do texto a notícia usada na composição do poema.
Index
Um cavalo morto não pode ler poemas.
Um leão morto não pode ler poemas.
Uma árvore morta não pode ler poemas.
O afogado não pode ler poemas.
Morto com 19 anos de idade no dia 19 de abril,
Domingo de Ramos, Gary English, atropelado por um Land Rover
do exército britânico sob o ataque de coquetéis molotov,
não pode ler poemas
Todos os que morreram com 19 anos não podem ler poemas.
Então o avião explodiu no céu da Ucrânia Oriental
e um dos cadáveres atravessou o telhado da casa de Irina Tipunova.
Os mortos no campo de girassóis não podem ler poemas.
Como explicar a poesia a uma baleia morta?
Como explicar a poesia?
O silêncio multiplica-se, incompreensível, no vento.
Mas o selo, inconfundível, não deixa dúvida.
É o silêncio. Como vem de longe, tem fome.
Dois amigos bebiam na cidade de Irbit, nos montes Urais.
O anfitrião insistiu que a verdadeira literatura era a prosa,
enquanto o convidado, um antigo professor, afirmava que era a poesia.
A discussão literária tornou-se rapidamente num conflito
e o amante da poesia matou o oponente a facadas,
disseram os investigadores.
Os desaparecidos, até que ressurjam, mesmo que séculos depois,
até que sejam sepultados estarão impedidos de ler quaisquer poemas.
Os mortos em Ruanda, na China, na Bósnia, no Congo,
no Líbano, no Paquistão, nenhum deles nunca mais
lerá um só poema, é preciso que se diga.
Meu pai não pode ser este poema.
In Escuta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 48-49.
* * *
Folha de São Paulo, 29/01/2014
Um ex-professor de 53 anos foi preso na Rússia acusado de esfaquear até a morte um conhecido por divergências sobre gêneros literários, informou a agência de notícias russa Ria Novosti.
Durante uma discussão sobre literatura na semana passada, a vítima, de 67 anos, argumentou que "a única literatura verdadeira é a prosa", informaram autoridades policiais da região de Sverdlovsk.
A afirmação revoltou o ex-professor, um amante de poesia, que então esfaqueou o colega até a morte.
Ambos estavam aparentemente bêbados na ocasião.
O acusado fugiu do local e só foi detido dias depois. O homem, cujo nome não foi divulgado, foi indiciado por assassinato e pode ser condenado a até 15 anos de reclusão.
Segundo a Ria Novosti, não é a primeira vez que embates intelectuais terminam em tragédia na Rússia. Em setembro passado, um homem foi baleado enquanto esperava para comprar cerveja na cidade sulista de Rostov-on-Don depois de enfurecer um vizinho de fila com suas opiniões sobre o filósofo iluminista alemão Immanuel Kant (1724-1804).

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