Luanna Belmont

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Diane Arbus





























questão de gênero

tremo de pensar
que me querem definir
                  pelo meu desejo
que me desejam - isso sim -
                  concretar
entre muros altos onde possam
                  não me nomear no fundo
                  não a mim que lampejo
mas nomear através de mim tudo
                  que em mim não está
                  que em mim não é
posto que é justamente busca
            tenso lençol em que me perco
nomear cunhar gozar antes de mim
                   o meu desejo


querem com a ordem do nome
signo macho sombra fêmea
ordenar-me por inteiro
possuir
                 aquele aquela que em mim
come a mim mesma
                 comprimir-me a fenda
por onde escapa a outra fenda
que tem por nome desejo
essa dura parte de mim que
                  não sinto
                  não ouço
                  não toco
                  não vejo


querem comer com este gênero nominal
                meu general e seu pau
                minha rainha e sua bainha
querem comer assim
                o cu das minhas hipóteses
                esta parte oca de mim
                este ávido não ser
que se traveste
que se preenche de puro querer
               e mesmo eu querendo muito
                - o que é tanto dom
                quanto tormenta -
essa parte de mim
                que não me sou
                só aumenta
bela e lúcida falta
que em mim contemplo
                e sendo o que é
                - falta -
                coisa enorme e lenta
tanto mais ela me salva
                quanto menos me contenta


porque
quando ela se senta no meu colo
                de frente para mim
                pernas abertas
                sobre as minhas
pouco importa o que sou
pouco importa a penetração
                em mim
do que fui até ali
                para os outros


porque
quando a pele branca dela
                o seu cabelo colorido
roçam de verdume claro
                e paralisante
                a pele minha
pouco importa o trânsito
que do lado de dentro aborta
ou grita
                minhas concomitâncias


porque
quando me sento sobre ele
                não sou mais:
                desejo a morte oculta
                de mim
                de tudo o que é
a morte subitamente instalada
                nos seus braços
                no seu caralho
vaguidão suprema no meu peito
                no seu olho que transpira
                libélulas vórtices valises


quando ela se senta
quero ser ela e ele
               não sou mulher
               nem homem
sou voyeur
sou cálice
sou presença
      evocada
                de toda coisa
                que de mim me ausenta

* * *
Aqui perto greve de polícia não medra

Nas ruelas graves
das pegadas de ontem,
por cima dos córregos de esgoto
improvisados,
a favela aqui perto entardece devagar,
indiscernível do sonho opaco
das mulheres que trabalham
e nem sempre voltam
para dormir em casa,
indiscernível da pequena pressa dos cães comuns
que ganham souvenires no açougue
e no abatedouro abertos até mais tarde,
onde as mulheres compram
diariamente a infância de seus filhos
em pequenas porções baratas.
Favela úmida, meio subúrbio, meio centro da cidade,
onde os gatos com testículos
caçam no escuro dos depósitos de bebida,
dos mercadinhos apertados, nos telhados das quitinetes
alugadas a preço padrão, com água e luz e Wi-Fi "incluídos".
Na favela ninguém paga água nem luz nem TV por
assinatura. Pagam-se taxas outras,
taxas tantas desconformes, você
nem queira saber. Na favela
não fazem sentido os semáforos,
só a lei do silêncio, que é bem outra.
Tudo é mais barato na favela,
e mais caro ao mesmo tempo. Basta
olhar nos olhos do homem que vende
milho assado na brasa
pra quem passa com fome na quebrada
da rua principal,
nos olhos do homem do milho há,
por exemplo,
um dia inteiro, um milharal inteiro,
vidas inteiras
cozinhando.
Nas mãos do entregador de legumes e verduras,
porque na favela entregam-se em casa
as compras do hortifruti sem taxa adicional,
conforme esclarecido,
naquelas caixas pesadas
e sacolas seguem junto,
para entrega,
noites inteiras pensando em parar,
apenas parar, e descansar as mãos trêmulas
entre quatro doses de cachaça.
Na favela, greve de polícia não faz sentido,
greve de lixeiro não faz sentido,
de motorista de ônibus
também não faz sentido. Moto-táxis
carregam fios de Ariadne amarrados
nas descargas quentes.
A favela é outra trama, outra estética,
é os braços, é as mãos, é as pernas,
a alegria ilegal que abastece a cidade
e nela se hospeda,
cio confinado, pipoco
confundido com gozo
e esperança de feriado.


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