Jussara Salazar

Poesia Brasileira do Século XXI - 13







Jussara Salazar publicou Inscritos da casa de Alice (1999), Baobá — Poemas de Leticia Volpi, (2002), Natália (2004), Coraurissonoros(Buenos Aires, 2008), Carpideiras, ganhador da Bolsa Funarte de Criação Literária em 2009 (MINC-Fundação Nacional de Artes, 2009),O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas (2014) e Fia(2016). É mestra em Estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

* * *

rezo
antes tarde
que nunca
rezo
não ao entulho
mas antes música
que estilhaço
no ardor
aquático
deste ácido entre
a orla
sempre um cáustico
iça
funde o corpo
negro
infla
do tímpano
ao pólen
da flor
ao astro
que beira o lago
rapta
o concêntrico eco
e antes refaz-se
do que nunca
hálito
enquanto ara
um palavreado
e apalpa
a teia
ante
o acústico
caleidoscópio

silêncio

são oitenta
projéteis
numerados
um a um
abaixo desta linha
dos trópicos

* * *
todos os dias empresto os olhos
para que ele veja os barcos
que entram e saem
navegando pela barra do cais
meus olhos calculam
a manobra do prático na linha das pedras
a massa líquida marítima
e o horizonte impreciso nos dias de chuva
quando o último navio desaparece
permanecemos imóveis no cais imaginário
sob o céu de pedra
acaricio a água com os olhos
estamos nus

* * *
O gato budista
Com seu olhar de adivinho
Sentava na janela ao entardecer
Planejava nossa fuga
Pelas avenidas vazias
Quando eles viessem
Com suas botas pesadas
Com suas armas cinzentas
Ferro lâmina aço
Quando nos levassem
Para depor sobre o olhar suspeito do gato budista
Deixaríamos as xícaras de café sobre a mesa
As xícaras de café sempre são
O indício de uma presença
O sintoma de uma ausência
A violação de uma ordem
Enquanto nos interrogava
A coronel se distraía
Postava imagens do filho
no zap    que beleza    diziam
   isentos
Caminhamos pela avenida vazia
Depois de alguns anos
O gato budista nos aguardava
com seu olhar de adivinho
sentado na janela
onde sempre amanhece
Bebemos um café
As xícaras guardaram no fundo
Leituras mágicas
Riscos desenhos silhuetas
Paisagens de um tempo antigo
Bebemos o futuro no fundo das xícaras
E adivinhamos
Entre a fumaça e as bordas da porcelana
Entre um dia e outro
Imaginamos
O dia impossível

* * *
Waly disse
a memória é
uma ilha de edição mas
alguma coisa flui
pedra bruta
flutua no deserto
rota
mapa
busca
irremediável perda

e à porta
um cão avisa:

cave canem
esqueça


* * *
eu 
migrante
abro a janela
para as serras marítimas
à frente
às terras
que se desdobram
[na languidez
amorosa e curva]
como uma cauda do mar
meus olhos alcançam seu corpo
e carrego um dedal dourado
para não me ferir nas lanças
gigantes
espinhosas
da vegetação longínqua
vejo
ao fim da tarde
o ourives do sol
tecer um manto verde
como uma envoltura
sobre a cabeça dessas árvores
habitantes secretas da serra
às vezes as vejo voar
tornam-se leves
para avistar as barcas
passando além da sinuosidade
lá ao horizonte
eu
emigrante
me visto com os dedais do sol
para tocar o pequeno bosque
para trazê-lo
e navegar sua túnica
desconhecida
espinhosa
gigante


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