Paulo Henriques Britto
Poesia Brasileira do Século XXI - 06
Paulo Henriques Britto é poeta, professor e tradutor. Estreou como poeta em 1982, com Liturgia da matéria, a que se seguiu Mínima Lírica (1989), Trovar Claro (1997), com o qual recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimarães, da Fundação da Biblioteca Nacional, e Macau (2003), com o qual recebeu o prêmio Portugal Telecom de literatura brasileira. Em 2004 lançou o livro de contos Paraísos artificiais e em 2007 lançou Tarde, seguido de Formas do nada, em 2012, do que publicamos alguns poemas abaixo. Já traduziu mais de cem livros, entre obras de William Faulkner, Elizabeth Bishop, Byron, John Updike, Thomas Pynchon e Charles Dickens.
Lorem ipsum
“Venham”, diz ele, “que eu lhes ofereço
sinéreses, cesuras, hemistíquios
e muito mais, e em troca só lhes peço
sofríveis simulacros de sentido.
Venham, que a noite é sólida e solícita,
e aguarda apenas o momento exato
de nos servir a suprema delícia,
como um garçom anódino e hierático.”
Porém apelos tantos, tão melífluos,
atraem tão só máscaras sem rosto,
cascas vazias e rabiscos pífios.
Tudo resulta apenas neste dístico:
Ninguém busca a dor, e sim seu oposto,
e todo consolo é metalinguístico.
Horácio no Baixo
(Odes i, 11)
Tentar prever o que o futuro te reserva
não leva a nada. Mãe de santo, mapa astral
e livro de autoajuda é tudo a mesma merda.
O melhor é aceitar o que de bom ou mau
acontecer. O verão que agora inicia
pode ser só mais um, ou pode ser o último —
vá saber. Toma o teu chope, aproveita o dia,
e quanto ao amanhã, o que vier é lucro.
Ecce homo
Não ser quem não se é é coisa trabalhosa.
Exige a disciplina austera e rigorosa
de quem, achando pouco simplesmente ser,
requer o luxo adicional de parecer.
As essências enganam, e o eu é tão escasso
que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,
e nada como a negação da negação
pra efetuar tão delicada operação.
E pronto: está completo. O homem mais o androide,
imune a suave mari magno e Schadenfreude,
ser e não ser na mais perfeita sintonia.
Use e abuse. A coisa vem com garantia.
Madrigal
Desista: não vai dar certo.
O mundo é o mesmo de sempre,
desejo é uma coisa cega.
Desista, enquanto é tempo.
As mãos não sabem o que pegam,
os pés vão aonde não sabem.
As cartas estão marcadas:
vai dar desgraça na certa.
O mundo é sempre a esmo,
desejo é uma porta aberta.
Desista, que a vida é incerta.
Ou insista. Dá no mesmo.
Man in a chair
(Lucian Freud)
Esperar sentado, mas sem
relaxar os músculos. Mãos
tensas nas coxas como quem
prestes a se levantar. Não
como quem, à espera, descansa.
E sim como se encurralado
na cadeira. Sem esperanças
nem expectativas. Sentado
na cadeira como quem não
espera exatamente nada.
Sem certezas, com exceção
da única, e indesejada.
Pós
Antes era mais fácil — sim, porque era
mais difícil, havia mais em jogo,
e o tempo todo se jogava à vera.
Precisamente: mais difícil, logo
mais fácil. Porque sempre se sabia
de que lado se estava — havia lados,
então. E a certeza de que algum dia
tudo teria um significado.
E nós seríamos os responsáveis
por dar nomes aos bois. Havia bois
a nomear, então. Coisas palpáveis.
Tudo teria solução depois.
Chegou o tempo de depois? Digamos
que sim. E no entanto os nomes dados
não foram, nem um só, os que sonhamos.
Talvez porque sonhássemos errado,
talvez porque, enquanto alguns se davam
ao luxo de sonhar, outros, insones,
imunes, implacáveis, se entregavam
à tarefa prosaica de dar nomes
sem antes os sonhar. E, dia feito,
agora tudo é fácil. E por isso
difícil. Não, a coisa não tem jeito.
Nem nunca teve, aliás. Desde o início.
In BRITTO, Paulo Henriques. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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